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Entre Dois Mundos aborda a desagradável realidade do desemprego

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O desemprego talvez seja um dos grandes males da sociedade moderna. Foi-se o tempo que as pessoas ingressavam em uma firma, cresciam hierarquicamente e se aposentavam após uma longa carreira. Lázaro Brandão, por exemplo, começou como escriturário e terminou presidente de um dos maiores bancos do país, o Bradesco, mas isso não acontece mais. Esta é uma realidade que dói, mais ou menos, dependendo da pessoa, e que não é restrita aos países subdesenvolvidos. O continente europeu, apesar de mais desenvolvido, não está livre desta chaga. A saída, às vezes, quando há uma, é recorrer a subempregos para por comida na mesa e pagar uma cerveja  como o objetivo de entorpecer a dor. Entre Dois Mundos, filme de Emmanuel Carrère, que esteve no Festival de Cannes 2021, aborda esta insólita e desagradável realidade. 

Entre Dois Mundos

Em Entre Dois Mundos, Marianne Winckler, interpretada por Juliette Binoche, é uma romancista e jornalista que escreve sobre a realidade da França. Com o intuito de embasar sua próxima obra, ela decide sentir na pele a realidade das pessoas que vivem pulando de emprego em emprego, sem poder programar o amanhã. Para isso, ela se muda para Caen, uma comuna turística situada na região da Normandia. Inicialmente, ela se candidata a um trabalho como faxineira em uma feira local de empregos e acaba sendo contratada por uma firma que presta serviço para residências. Depois vai para uma empresa que cuida da limpeza das barcas que partem de Ouistreham em direção a Portsmouth, na Grã-Bretanha. Neste ínterim, acaba conhecendo Christèle, vivida por Hélène Lambert, uma mãe solteira que rala para sustentar seus três filhos, e Marilou, a atriz Léa Carne, uma jovem repleta de sonhos sufocados pelos percalços do dia a dia. 

Mesmo com a correria diária mostrada Entre Dois Mundos, a protagonista tem tempo de se deparar com um pretendente, Cédric, em papel desempenhado por Didier Pupin, um ex-militar que sonha em montar um fast-food de pizza, com a figura de uma chefe bastante compreensiva na personagem Nadège, vivida pela atriz Évelyne Porée, e com um casal que lhe estende a mão quando ela mais precisa. Tudo isso somado confere um certo ar de normalidade a uma rotina tão intensa e insegura do ponto de vista profissional. Em suas amigas supracitadas e nessas pessoas todas, Marianne encontra o amparo de uma espécie de família postiça, que briga, que confraterniza, que chora e que ri, tudo junto. O problema é que ela guarda um segredo. Todos acham que ela é um deles, porém, em algum momento a verdade terá que ser revelada e aí sabe-se lá quais serão as reações e as consequências. Dito isto, o roteiro escrito pelo próprio Emmanuel Carrère, em parceria com Hélène Devynck, administra bem o suspense ainda que, no fim, apele para a forma mais óbvia de revelação do segredo. 

Caen não é Cannes e nem fica em Cote d’Azur (Costa Azul), lugares abraçados pelo mar e de viés turístico. Ainda assim, por ser uma região que também atrai turistas, não dá para deixar de pensar na vida dura que Marianne e seus companheiros vivem em face ao glamour da costa francesa. Vendo Entre Dois Mundos, reparem que os dias são todos nublados e frios. Uma simples ida à praia e um mergulho no mar, durante uma pausa do trabalho, são capazes de provocar arrepios de frio nos espectadores mais compenetrados. E aí não é possível e nem importante saber se houve uma colaboração mágica de São Pedro, um grande exercício de paciência por parte da realizadora ou só competência mesmo na hora de escolher a época do ano para as gravações externas, mas a verdade é que o fator climático, em perfeita consonância com a fotografia de Patrick Blossier, ajuda a reforçar o sentimento daquele grupo de indivíduos de não pertencimento ao paraíso. Desta forma, se alguém na plateia estiver passando por um momento de instabilidade profissional ou de dificuldades financeiras, além dos arrepios, deve-se ter cuidado com eventuais gatilhos emocionais.

O conjunto de interpretações de Entre Dois Mundos é um dos aspectos mais louváveis e elogiáveis de toda produção. Em uma obra em que o caráter intimista se acentua, cada vez mais, à medida que vamos nos tornando íntimos daqueles personagens, havia a real necessidade de que o elenco entregasse desempenhos equilibrados e com poucos espaços para arroubos emocionais, a menos, claro, em situações específicas e de visível estresse psicológico. Neste quadro, a opção por Juliette Binoche, diva de ilimitados dotes dramatúrgicos, caiu como uma luva. Binoche possui ainda outro aspecto fundamental para o papel: poucas atrizes conseguem ir do luxo ao popular e convencer com semelhante desenvoltura. Marianne é uma escritora de sucesso e o seu mundo não é aquele. Todavia, quando ela surge em cena, com pouquíssima maquiagem, olheiras profundas, fica muito difícil não acreditar na história que ela conta sobre o seu passado. Aquela mulher tem se alimentado do pão que o Diabo amassou, pensamos. Sua principal parceira cênica, com quem constrói uma relação de cumplicidade baseada em uma mentira que nada invalida seus sentimentos, Hélène Lambert, está muito bem representando a imagem de uma mulher aquebrantada pelas mazelas diárias. 

Em francês, nacionalidade desta produção, o título original de Entre Dois Mundos é Ouistreham, o nome do porto de onde partem as barcas para a Grã-Bretanha. Faz sentido, óbvio. Contudo, o nome pelo qual o filme foi batizado nos Estados Unidos e no Brasil, exatamente o mesmo, acaba que faz muito mais sentido por representar a dualidade vivida pela protagonista, que diz e finge ser uma coisa, mas é outra. E, em uma concepção de cunho psicológico, representa também a sensação de angústia daquelas pessoas retratadas na história e que Marianne quer tanto compreender para poder escrever sobre. Quem não consegue programar o amanhã, não sabe bem em que mundo se encontra e a qual realidade pertence. Quanto mais graves os problemas e as dificuldades, maior o olhar de desolação que vemos, por exemplo, na personagem Christèle. No meu caso, ainda que a situação não seja tão ruim, o que vivo hoje já foi suficiente para que essa obra dialogasse comigo como nenhuma outra fazia há bastante tempo. 

Desliguem os celulares e excepcional diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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