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Manas: Marianna Brennand faz recorte sobre o combate sobre o combate ao abuso infantil

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Segundo dados divulgados em 2024, por ocasião do Dia de Combate ao Abuso e à Exploração de Crianças e Adolescentes, 116 menores, diariamente, sofrem violência sexual em todo o Brasil. Os números são alarmantes e a situação é ainda mais absurda se pensarmos que muitas dessas agressões acontecem dentro de casa, perpetradas por pais, tios, padrinhos, ou seja, justamente por aqueles que deveriam zelar por estes indefesos. E o quadro talvez seja ainda muito pior nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos, onde a ausência de uma cidadania plena, devido ao fato da população local não ter acesso a direitos elementares como educação, saúde, segurança e lazer, corrobora para um quadro de fragilidade e total submissão aos agressores. Tendo, provavelmente, esses dados em mente, a cineasta Marianna Brennand foi à campo e coletou depoimentos absolutamente reais, na Ilha de Marajó, que serviram de matéria prima para Manas, um longa-metragem bastante desconfortável, mas necessário ao dar voz àqueles que se calam sufocados e humilhados pela vilania do cotidiano. 

Manas

Em Manas, Marcielle, também conhecida pelo apelido de Tielle e vivida por Jamilli Correa, é uma pré-adolescente de 13 anos que vive com o pai, Marcílio, o ator Romulo Braga, e a mãe, Danielle, a atriz Fátima Macedo, dois irmãos e uma irmã, em uma comunidade ribeirinha, na Ilha de Marajó. Os seis habitam em uma pequena casa de palafita, às margens do Rio Amazonas e de condições insalubres. Quase todos dormem em redes, pois só há uma cama, em tese, pertencente ao casal. No dia a dia, ela ajuda a cuidar dos irmãos mais novos, auxilia a mãe em tarefas domésticas e vai à escola que só pode ser alcançada de barco. Oportunidades de se divertir são raras e só mesmo através de brincadeiras no rio, nadando, ou assistindo às novelas com a amiga Cynthia, interpretada por Samira Eloá, na televisão de um pequeno comércio na vizinhança. Sua rotina é dura, estéril, mas aparentemente tranquila e igual a de tantas outras meninas da região. Acontece que as aparências muitas vezes enganam. 

Aos pouquinhos, pistas que contrariam esta tranquilidade são dadas, como pílulas, aqui e acolá. A primeira delas é a fantasmagórica presença – ou seria melhor dizer ausência? – de Cláudia, a irmã mais velha de Tielle. Os filhos mais novos da família mal se lembram dela, esse é o caso de Carol, vivida por Emily Pantoja, outra irmã da protagonista. Já o público toma conhecimento de sua existência de duas formas: em uma conversa, recolhendo a roupa do varal, em que a mãe conjectura que se Marcielle tiver sorte, ela também vai arranjar um marido que a leve embora dali; e por uma foto, em um porta-retrato. Por que a primogênita partiu? Por que, ao que tudo indica, ela nunca mais deu notícias? A segunda pista está no comportamento do pai. Inicialmente, apenas um homem bronco, rude, possivelmente, machista. Ocorre que, devagar, mas sempre em frente, o roteiro de Manas, escrito pela própria diretora, em parceria com o cineasta Felipe Schöll e mais quatro parceiros, introduz situações que mostram para o público que há muito mais ali, principalmente, quando fica claro que Tielle é a “favorita” do progenitor. Exalando um medo silencioso, os olhares da mãe transformam as suspeitas em certezas bem menos turvas do que as águas barrentas que cercam a casa. 

Em seu longo périplo internacional até a tão aguardada estreia em solo tupiniquim, Manas colecionou muitos prêmios em festivais. Não é possível citar todos, mas, alguns merecem destaque. Um deles é o GDA Director’s Award, conquistado no Festival de Veneza de 2024. O outro é a láurea de melhor roteiro no Sam Spiegel International Film Lab, em Jerusalém. O primeiro chama a atenção porque este é o debut de Marianna Brennand como diretora de filmes de ficção. Os seus dois trabalhos anteriores, dirigindo, foram docs. E assistindo ao longa-metragem é possível compreender o porquê dela ter sido premiada logo de cara. Sua direção sóbria, que esmiuça cada aspecto de tomadas bem planejadas, coloca o público no centro do embate crescente entre filha e pai, à medida que a menina entende o que está acontecendo. E, de alguma maneira, a direção da realizadora brasileira me remeteu direto a do realizador colombiano Ciro Guerra, em “O Abraço da Serpente”, de 2016, o que por si só é um ótimo parâmetro. Já o segundo é a prova de que, nem sempre, roteiros escritos por muitas mãos tendem a ser confusos. Apesar de um ou outro momento mais expositivo, o texto traça uma linha narrativa clara, que deságua em um ótimo desfecho, esperado, porém, inevitável. 

O conjunto de interpretações desta obra é, sem dúvida alguma, algo impressionante. Todo o núcleo familiar de Tielle, mesmo os irmãos que possuem poucas falas, entrega muito. O irmão mais velho, por exemplo, traduz com caras e gestos a decepção de ser trocado pela irmã na hora que o pai precisa de companhia para caçar. Fátima Macedo, no papel da mãe que não reúne forças para defender a filha, também achou o tom certo para a sua personagem. Todavia, ninguém está melhor do que Jamilli Correa e Rômulo Braga. Ganhadora do Prêmio Especial do Júri, no Festival do Rio, outra premiação que merece destaque, a garota é uma revelação. Sua interpretação emana uma força tão latente, progressiva e constante, que mal dá para perceber o exato instante que Marcielle entende que é vítima de abuso há algum tempo. Por sua vez, Marcílio personifica a afamada banalidade do mal que se camufla em um trabalhador e em um pai de família que vai ao culto dominical com toda a prole. Lá pelas tantas, Danielle conta para a filha que quando foi expulsa de casa, foi ele que lhe deu um prato de comida e um teto para morar. Atitudes dignas de um homem bom. A questão é que justo estes homens bons são capazes de guardar dentro deles uma besta enjaulada, da mesma maneira que Braga é capaz de guardar dentro de si uma faceta que ainda não conhecíamos do seu talento. 

Manas, como escrevi lá atrás, é fruto de uma ampla coleta de depoimentos, de experiências pessoais que foram transformados em uma obra bastante desconfortável. Me peguei, em diversos momentos, pensando em como a situação retratada no filme pode estar acontecendo agora, diante dos meus olhos, sem que eu seja capaz de ver. Se vocês, ao saírem da sala de cinema, sentirem o mesmo incômodo, é sinal que o trabalho de Marianna Brennand e de toda a equipe envolvida em Manas foi bem sucedido. E por falar na diretora, uma observação: muitos cineastas, por melhores ou mais experientes, às vezes, não sabem como fechar uma história. Vou citar apenas um exemplo: “Motel Destino”, longa-metragem do ano passado, de Karim Aïnouz, seria perfeito se terminasse na cena do acidente de carro. Tudo o que veio depois só serviu para tirar o impacto do desfecho de uma história que já não tinha mais nada para contar. Aqui, isso não acontece. Brennand, em sua primeira incursão na ficção, soube a hora exata de desligar as câmeras. Lembro-me de sacudir os braços, sozinho, feito um maluco, pedindo que acabasse ali, e da tela ficar toda preta logo em seguida. 

Desliguem os celulares e excelente diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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