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Mundo Novo aborda os abismos sociais diários

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A pandemia trouxe marcas indeléveis para todo mundo, desde então, nossa sociedade, as nossas famílias e a humanidade de uma maneira geral nunca mais foram as mesmas. De um dia para o outro, milhares de vidas foram ceifadas. Pessoas que amávamos, pessoas que não conhecíamos, sumiram para sempre e nós tivemos que aprender a viver sem elas. Essa doença terrível e até então desconhecida reconfigurou toda a nossa existência, criando, desta forma, um “antes” e um “depois” de seu surgimento meteórico no seio humano. Todavia, assim como uma bela flor é capaz de brotar no solo mais árido, coisas boas também surgiram deste legado de dor, entre elas, o aprimoramento da capacidade humana de aprender com as piores lições e a produção de obras de arte que reflitam sobre este aprendizado, como, por exemplo, o longa-metragem brasileiro Mundo Novo, de Álvaro Campos.

Em algum momento propositalmente não especificado da pandemia, já mais para a fase de reabertura, Mundo Novo conta a história de um casal interracial, Conceição (Tati Villela), uma advogada preta bem-sucedida, e Marcelo Presto (Nino Batista), um grafiteiro branco tentando sobreviver da sua arte, que decide morar junto. Com um apartamento em vista para comprar no bairro do Leblon, eles precisam de um fiador e o escolhido é o irmão de Marcelo, Charles (Kadu Garcia). Especialista em investimentos no mercado imobiliário, Charles reside em uma casa, que pertenceu a sua família, com o marido Carlos (Paulo Giannini) e a empregada Kelly (Melissa Arievo). A trama inteira transcorre no espaço de um único dia, começa com o céu claro e termina à noite. E o que era para ser apenas uma visita em busca de uma assinatura, se transforma em um tenso encontro familiar.

O início da tensão se dá por motivos pandêmicos. Conceição e Marcelo estão mais à vontade, saindo de casa e agindo com naturalidade. Charles não. A forma como Kelly abre o portão e os recebe é fria, distante. Uma vez dentro, só Marcelo, inicialmente, tem acesso aos cômodos da residência. Conceição, não. Como uma visita indesejada, ela tem que esperar na varanda. O gelo é quebrado quando Carlos aparece. Bêbado, simpático e autêntico. Neste momento, o filme já proporciona indícios de que a frieza da empregada talvez não seja só por causa da pandemia e do medo de ficar doente. Quando Charles surge, esses indícios ficam ainda mais claros. Ele recebe a namorada de Marcelo e a mantém à distância. Evita os dois beijinhos típicos dos cariocas e diz que é pelo bem da saúde de todos. E não deixa de ser, mas é mais do que isso. Outros componentes desta nova relação serão esmiuçados posteriormente.

A reconfiguração citada no primeiro parágrafo passa por aspectos como as relações de trabalho, dentre eles a normalização do trabalho online, e as relações pessoais. Ficar muito tempo dentro de um mesmo lugar, com as mesmas pessoas, ou fez muito bem, ou fez muito mal. Há famílias que se aproximaram e se uniram como nunca durante a pandemia, e há famílias que implodiram e se desestruturaram totalmente. No entanto, famílias que passaram muito tempo afastadas também foram afetadas, positiva ou negativamente. A impressão é de que a reaproximação após este hiato, para muita gente, foi marcada por uma frieza e por uma impessoalidade que outrora eram disfarçadas pelo amor e pelo afeto dos laços consanguíneos. A entrada em cena de Chinara (Leandra Almeida) e Keyla (Priscila Marinho), as irmãs de Conceição, e a relação das três em contraste com a relação de Marcelo e Charles, reforça essa impressão.

Praticamente todo rodado em uma mesma locação, Mundo Novo é um filme de baixíssimo orçamento que aposta em um roteiro pujante, escrito a muitas mãos, pelo diretor e todo o elenco, e em grandes atuações sublimadas pela estrutura teatralizada da produção. A obra de Álvaro Campos, na verdade, é e não é só sobre a pandemia. Ela é igualmente sobre o racismo, os abismos sociais diários e o preconceito perpetrado justamente por aqueles que sofrem com ele e por isso deveriam repudiá-lo. Neste caso, a pandemia e o seu contexto reconfigurador servem a um propósito claro na trama: realçar as personalidades de cada personagem. Da mesma forma que a fotografia preta e branca não soa como mero capricho do realizador. Não há maniqueísmo evidente ou mascarado nesse novo mundo, o que há são pessoas tentando aprender com as piores lições.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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