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Luiz Felipe Reis dialoga com a geografia literária de Roberto Bolaño

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Alternativa estética a todo o pensamento da sociologia acerca dos hiatos (afetivos e políticos) deixados na América Latina pelas ditaduras militares e pelos grilhões econômicos com os EUA, a literatura do chileno Roberto Bolaño (1953-2003) incendiou sentimentos distintos (ora de revolta, ora de pertencimento) no coração de seu público leitor, propondo uma cartografia sentimental de seu continente. Nas páginas do seminal “2666” (editado postumamente e lançado aqui pela CIA das Letras), ele escreve sobre seus conterrâneos, “experimentaram o que era estar num purgatório, uma longa espera inerme, uma espera cuja coluna vertebral era o desamparo, coisa muito latino-americana, aliás, uma sensação familiar, uma coisa que se você pensasse bem experimentava todos os dias, mas sem angústia, sem a sombra da morte sobrevoando o bairro como um bando de urubus e espessando tudo, subvertendo a rotina de tudo, pondo todas as coisas de pernas para o ar.” É esse sentimento de desterro existencial, de fratura, que rege a imersão literária e filosófica no universo do escritor feita pelo dramaturgo e diretor teatral Luiz Felipe Reis em “Deserto”, que acaba de regressar aos palcos do Rio de Janeiro.

O texto (um dos mais maduros do ano nas artes cênicas cariocas) está em cartaz no Teatro Firjan Sesi Centro (av. Graça Aranha), o espetáculo trança reflexões, viveres, saberes, reflexões, cicatrizes e curas. Renato Livera contracena com imagens em projeção, investiga os limites entre a escrita de si e a escrita de um povo, num jogo performático a partir das inquietações de Bolaño.

Em conversa com o diretor, Luiz Felipe Reis, ele conta ao Rota Cult da relevância geopolítica e sentimental do escritor por trás de “As Agruras do Verdadeiro Tira” e “O Gaúcho Insofrível”. A cada resposta, ele explica seu processo criativo com Livera, que vem impressionando plateias com suas estratégias para importar a palavra literária para o coração da cena.

Qual é o Chile de Bolaño e o que desse território dele transborda literatura afora na prosa de livros como “Estrela Distante” e “Chamadas Telefônicas”? 
Luiz Felipe Reis:
 É difícil saber qual é o Chile de Bolaño. São muitos e, acima de tudo, mutantes e contraditórios. Não há uma imagem que se estabilize ou que se feche. Nesse curto arco de 50 anos de vida, entre 1953 e 2003, Bolaño viveu muitos Chiles, marcados por diferentes contextos políticos, afetivos e culturais, estando ele sempre, geograficamente, mais fora do que dentro do país, porém afetivamente continuamente imerso nas questões culturais e políticas chilenas. O que sabemos do Chile de Bolaño é apenas a partir do que ele deixou espalhado em seus livros, entrevistas, poemas, conferências e outros textos; uma série de pistas nem sempre confiáveis e bastante complexas, contraditórias, em relação a esse recorte territorial que chamamos de Chile. O que podemos dizer é que era uma relação intensa, paradoxal e conflituosa, marcada por afetos muito intensos. Nostalgia e horror, orgulho e vergonha, atração e repulsa em níveis muito concentrados.

Que olhares (que máscaras, que personas) aparecem na escrita dele?
Luiz Felipe Reis: 
Nesse contexto acidentado, podemos destacar o Bolaño apaixonado e devotado ao legado dos poetas chilenos como Nicanor Parra, Enrique Lihn, Jorge Teillier, Vicente Huidobro, Gabriela Mistral, assim como o Bolaño impiedoso, ácido e corrosivo que criticava violentamente os romancistas chilenos. Criticava não apenas por sua extrema exigência enquanto leitor, mas sobretudo por aquilo que ele qualificava como um desvio ético daqueles que se aproximam da literatura a partir de um viés utilitário, como um meio de obtenção e acumulação de capital social, uma forma de alcançar respeitabilidade, prestígio, fama, dinheiro, em detrimento de uma busca mais fundamental e, para Bolaño, inegociável: a literatura que surge de um pacto existencial com a excelência poética, artística — o que para Bolaño, é importante dizer, não significava “escrever bem”, realizar uma obra “bem acabada” etc., mas sim ter a coragem de olhar o real, isto é, o desconhecido, o mistério, a morte, em suma, tudo o que mais nos inquieta e assusta.

Sua peça sugere um termo, “coragem”, como o sendo o substantivo essencial da prosa, da poesia e do ensaio de Bolaño. O que seria essa “escrita corajosa”?
Luiz Felipe Reis: 
Para Bolaño, viver e escrever exigiam uma única disposição humana: coragem. A coragem de olhar. De olhar o abismo e de mergulhar nesse abismo de olhos abertos e encarar seja lá o que você encontrar. Como ele disse em um dos seus escritos, a literatura é como uma arena com um samurai encarando outro samurai, mas que esse outro samurai não é um samurai, ele é um monstro, uma coisa, o desconhecido, forças supra-humanas, muito maiores e mais fortes do que cada um de nós. Em suma, o humano diante das forças monumentais do natural cósmico-terreno. Encontramos aí a dimensão trágica da existência, e o poeta, em Bolaño, toma para si essa ética do poeta trágico, de lidar e enfrentar a condição trágica da existência humana sem desvios e negação em relação ao real, ao incognoscível, ao incomensurável. 

Como a geografia afetiva de Bolaño, no espelho invertido a partir do qual sua peça o enquadra, reflete o Brasil?
Luiz Felipe Reis: Para Bolaño olhar o real significa, precisamente, inverter ou deslocar esse espelho que nos revela uma imagem enquadrada, estabilizada — o espelho da História e da Cultura oficiais —, e apontá-lo para outra direção, para que possamos ver a outra imagem, a imagem que falta. É tentar ver o que está fora de quadro, para além do quadro-imagem que o espelho histórico-cultural oficial reflete. Em outras palavras, tentar tornar visível-perceptível, na medida do possível, aquilo que é colocado na obscena, fora do campo das percepções.  Talvez mais do que inverter o espelho, Bolaño buscava, de fato, quebrar esse espelho, o espelho histórico-cultural, as imagens constituídas e normalizadas pelo poder e pelo status quo, mas não apenas estilhaçar esse espelho e, sim, furar de fato o espelho, produzir um furo na imagem para que possamos tentar — porque é sempre uma tentativa limitada — acessar/olhar o que está por trás da imagem que aparece à superfície — o reflexo do mesmo, a imagem duplicada, pleonástica. O que ele busca olhar/acessar — e através da sua obra nos convida fazer o mesmo — é o que está por trás do “espelho”, da imagem enquadrada pelo poder, o que está por trás dessa imagem, por trás do teatro de sombras da caverna de Platão. Esta é uma das grandes obsessões de Bolaño. O olhar como um dispositivo de perfuração e desestabilização do mundo das aparências, do “real aparente”, conformado em imagens estabelecidas pelo poder; imagens aceitáveis e reconhecíveis. Para ele, é este o gesto poético-político-existencial fundamental. A coragem do desvelamento, a vontade de olhar o real, sem desvio e negação. Com medo, sim, claro, às vezes trincando os dentes, mas sobretudo com desejo e com coragem. É aí que reside a operação ética-estética da sua obra e do seu imaginário: a metamorfose do olhar, ou seja, a mudança dos modos de ver, perceber e interpretar o real — a vida, a História, a nós mesmos etc. É assim, com esse olhar que questiona e desestabiliza a História e a Cultura oficiais, que ele olha para o Chile, para a América Latina e, portanto, acaba desvelando também algo do Brasil.

Como funcionou a dinâmica da direção de Renato Livera para fugir da mímese e criar um Bolaño próprio, seu, de você? 
Luiz Felipe Reis: 
Antes do trabalho de direção propriamente dito, há a pesquisa e o trabalho de imaginar que ator poderia trazer ao processo aquilo que a dramaturgia e o projeto da encenação requerem. Assim que se estabeleceu o fato de que meu antigo projeto de encenar o “2666”, iniciado em 2017, não seria mais viável, tive que pensar num outro caminho e, em novembro de 2023, surge esta nova premissa. Em vez de encenar “2666”, imaginar os últimos anos da vida do Bolaño, durante os quais ele lidava com o avanço de uma doença hepática crônica e, diante da iminência da morte, empenhava todas as suas energias à escrita e à tentativa de concluir a sua obra-prima final, “2666”. A partir daí compreendi que “Deserto” teria uma estrutura mais fragmentada, como se mergulhássemos num lugar que é um misto de memória, consciência e inconsciente poético do autor, em que cada cena seria algo como a irrupção de uma memória, a lembrança de uma situação ou experiência significativa da sua vida. É como se toda a peça fosse uma espécie de “filme imaginário”, aquele filme que se passa na tela mental de cada um de nós durante os segundos que separam a consciência de que vamos morrer e a consumação da morte factual.

Qual é o lugar da finitude nessa dinâmica?
Luiz Felipe Reis: 
A peça como um todo é uma espécie de ultra dilatação desses instantes que separam a compreensão de que se está morrendo e a morte. A partir daí comecei a ler e reler não só a obra literária e poética do Bolaño, mas também suas crônicas, notas, ensaios, entrevistas, conferências, certas etc.; e nesse mergulho compreendi que não buscaríamos representar Bolaño em cena, mas experimentar como o seu imaginário e sua criação poética afetariam um ator e ver o que o resultaria deste encontro.

Qual era a busca a ser empreendida por você e Livera no processo?
Luiz Felipe Reis: 
O que me interessava era ver, através do processo, como as palavras e o imaginário do Bolaño afetavam um corpo e uma subjetividade. Então a cada texto, em cada cena, as palavras de Bolaño ressoavam de uma determinada forma no corpo-subjetividade do Renato e nos levavam a uma certa direção, a uma resposta, a uma forma de performatividade muito específica. Então não trabalhamos com a noção de representação. Eu raramente trabalho nessa chave. Gosto de trabalhar a partir de uma chave performativa algo dialética, isto é: colocar em relação – em jogo, em atrito – um texto e um ator e, a partir daí, ver o que resulta desta fricção, que faíscas, que energias e formas se manifestam, irrompem, e a partir daí, claro, vem todo o trabalho de modelar e ajustar as qualidades, os estados, os tempos, ritmos e sonoridades da atuação. Nesse sentido, o que resulta é um Bolaño indissociável do performer e da pessoa Renato Livera.

A que amálgama você e seu protagonista chegaram?
Luiz Felipe Reis: 
O corpo de Renato, sua personalidade, suas memórias, tudo é atravessado pelas palavras do Bolaño e resultam numa terceira coisa, que não é nem só Bolaño e nem só Renato, mas o resultado dessa transfusão de energias. Trabalhamos no deslizamento contínuo entre essas duas polaridades complementares, Bolaño e Renato, pessoa e personagem, assim como em outros deslizamentos, como o trânsito entre o narrar e o atuar, em que, ao longo da peça, o Renato acaba sendo uma espécie de “narrator”, deslizando entre narração, representação e livre performance. Acima de tudo, o que há em cena é um corpo e uma subjetividade mobilizados por diferentes ideias, palavras, imagens e sons que afirmam a necessidade vital da criação poética e artística para a existência humana. Se a criação, a fabulação e a imaginação não fossem fundamentais à saúde do psiquismo humano, certamente tais disposições já teriam desaparecido ao longo da evolução. Acredito em boa medida na perspectiva de (Johan) Huizinga (linguista holandês), que propõe que, mais do que homo sapiens, somos homo ludens. Seres animados e mobilizados pelas forças e vontades de criação, e pelo ardente desejo de sermos maravilhados e encantados, como propunha (o filósofo francês Georges) Bataille.

Luiz Felipe Reis também é autor e diretor de “A Inútil Biografia De Um Homem Qualquer” (2014) e “Estamos Indo Embora…” (2015),.

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