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“Hamleto” dessacraliza o ‘ser ou não ser’ com bom humor

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Ao contagiar sua trupe com o brado retumbante “Enforquem-se na corda da liberdade!”, Antônio Abujamra (1932-2015) instaurou que a palavra de ordem para o grupo Os Fodidos Privilegiados seria a “dessacralização”, o que vale tanto para a moral vigente na sociedade ocidental quanto para a relação com o patrimônio simbólico do próprio teatro. Não por acaso, peças de seu repertório, como “Esta Noite Se Improvisa” (2000), bagunçavam a própria “bagunça” que autores como Luigi Piradello (1867-1936) propunham como veio para manter a milenar arte do canto dos bodes conectada com o contemporâneo. Não é de se espantar que, fiel ao legado do mestre, sua falange cênica de exus proponha uma ruptura com o sagrado shakespeariano ao trazer o Príncipe da Dinamarca ao palco do Teatro Ipanema – embaixada histórica de pesquisa de linguagem e celebração dionisíaca. Baseado em texto do italiano Giovanni Testori (1923-1993), autor já encenado pelo próprio Abu outrora, “Hamleto” é, de longe, o espetáculo mais divertido hoje em cartaz no Rio, capaz de recuperar uma sensação de leveza (mas carregada de crítica) que deu aos Fodidos sua marca de excelência.

Em meio ao tom solene (por vezes, sepulcral) que se abateu sobre a arte brasileira, em que tudo cai na tentação de virar discurso armado, é um prazer ver um exercício de criação descontraído, que parece uma mistura de “Rosencratz & Guildenstern Estão Mortos” (filme ganhador do Leão de Ouro de Veneza em 1990) com “Sai de Baixo”. Há muitos acertos em cena na direção geral (pop até a medula) de André Abujamra, sendo a que mais salta aos olhos a criação da dupla de influencers Tic e Toc, hilária, encarnada com precisão por Dani Fontan e Beto Bruno. Cada entrada deles é uma gargalhada certa. 

Sob a ágil direção cênica e de movimento de Johayne Hildefonso, eles regurgitam abrasividade interpretando os comentadores pós-modernos da saga de Hamlet, aquela do “ser ou não ser”. Esbanjam deboche na revisão da cruzada justiceira que a cultura de massas mascou, mastigou, engoliu e ruminou como (e o quanto) quis, sobretudo do século XIX para cá, com a invenção das artes de reprodutibilidade técnica. O filósofo Jean Baudrillard (1929-2007) dizia, nas páginas do livro “A Transparência do Mal”, que nada desaparece pela escassez e, sim, pelo excesso. A aventura trágica do aristocrata escandinavo que busca vingar o assassinato de seu pai tinha tudo para desmanchar no ar com sua excessiva proliferação das coxias para o audiovisual, mesmo com toda a potência poética de suas falas. Graças a experimentações provocativas como a dos Fodidos, ela preserva a relevância – como instância de saber e de invenção – nos dias de hoje. 

No comando das carrapetas, André traz um impávido Antonio Grassi (com o carisma a mil) para viver o nobre dinamarquês em luta contra o tio, Claudius (Alexandre Lino, sempre luminoso), que envenenou o rei e tomou seu lugar, numa conspiração. Ao fundo, projeções em vídeo animadas, que misturam anime japonês e imagens capa & espada dignas de “Game of Thrones”, dão um tom vívido ao embate filosófico (jocoso) que se extrai do original de Shakespeare. É um “Hamlet” versão Maguary, tipo suco concentrado, que, depois de agitado, está pronto para beber. No elenco, há trilhas de destaque para Iris Bustamante (um sol em cena como Gertrudes) e para o Caliban vivido por Claudio Gomes. A expressão física de Lino, como a ave de rapina Claudius, arranha uma dimensão cartunística de desenho animado, que parece o Zeca Urubu do “Pica-Pau” em sua sanha mefistofélica. 

Há muito para rir. Há muito para pensar. É Abu na veia. 

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