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Os Irmãos Karamázov: Dostoiévski passa por um filtro pop

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Documentarista sem câmera, responsável pela película sem sal de prata de uma época no qual um império olhou(-se) para o precipício, Fiódor Dostoiévski (1821-1881) virou peça. Ganhou uma engenharia jogralesca em que atrizes e atores fazem da fricção uma forma de acender uma centelha contemporânea numa fogueira moderna. “Os Irmãos Karamázov”, o tal espetáculo, muito crocante, começa numa ladainha e se abre a autopsias em corpo vivo não da História (como faz o livro homônimo de onde brota), mas de gente(s). 

Não cabe falar no pleito pós-moderno ao analisar o que se vê, pois essa rotulação soa como etiqueta noventista, como rótulo dos paradigmas de simulacro em voga nos anos de 1990. Hoje se fala em fluidez e o que Marina Vianna e Caio Blat trazem para a direção é líquido, atento ao evangelho das concepções fluidas do presente. 

Aliás, sua maior destreza (e o espetáculo tem muitas, a começar do esplendor no desenho de luz de Sarah Salgado e Gustavo Hadba) é portar a voz de sua época, retratar o hoje. Como teatro é (sempre) proveta, pela essência que essa arte tem de ser instantânea (e conseguir, ainda assim, ser perpétua em sua momentaneidade), o que se extrai da ciranda multimídia executada é uma investigação daquilo que a sociedade ocidental (do agora) fez da ideia de ruína, de onipotência e de desamparo. O século XIX de Dostoiévski vira Mate Leão na montagem. Os rearranjos de uma Europa entre unificações e revoluções é passado num filtro Pop. O resultado é, certamente, refrescante e nada esquecível. 

Houve uma maleabilidade das artes cênicas com Dostoiévski que o cinema não soube ter, à exceção do belíssimo filme brasileiro “Nina” (2004), de Heitor Dhalia, que deriva de “Crime e Castigo”. Ali, mascava-se uma massa sólida (sobre o ranço de culpa e de perdão que baliza as culturas do Velho Mundo, da Eurásia e de um Brasil colonial) qual um chiclete Bubbaloo com recheio de desilusão. Marina e Blat fazem a mesma coisa, só que de forma mais dionisíaca. 

O clã Karmázov dela e dele é mais iluminado. Reflete a polifonia vaga e gaga dos dias atuais, ou seja, a palavra se esgarça, num puxa-estica-solta-e-enrola que relativiza o que lhe é absoluto.   
Na telona isso jamais aconteceu, ainda que Dostoiévski tenha contado com o olhar de um titã, Luchino Visconti, ganhando dele um filme definitivo: o “Noites Brancas” de 1957. 

Nos tempos em que o Estado socialista assumiu o cinema como a mais potente engenhoca de propaganda do século XX, “Os Irmãos Karamázov” fizeram parte essencial do repertório fílmico da União Soviética numa fase já outonal de sua produção audiovisual épica a partir de uma adaptação dirigida por Ivan Pyryev, em parceria com Kirill Lavrov e Mikhail Ulyanov, em 1969. 

O sucesso de bilheteria em terras eslavas, somada a uma indicação ao Oscar em 1970, permitiu que o longa-metragem passasse pelas franjas da Cortina de Ferro de um mundo polarizado pela Guerra Fria. No entanto, esse mastodonte (com três horas e 52 minutos) não preservou seu relevo na memória daquela filmografia associada à Revolução de Outubro, empalidecendo no tempo, sobretudo diante de conterrâneos como “Quando Voam As Cegonhas” (Palma de Ouro de 1958) ou “Andrei Rublev” (1966).

Melhor sorte teve uma versão lançada por Richard Brooks, um americano da Filadélfia, em 1958, graças à escalação de Yul Brynner (o curió de “O Rei e Eu”) e de um William Shatner (o Capitão Kirk) ainda num período de galeto a belo canto, antes de assumir os controles da nave Enterprise. Mesmo popular, essa adaptação hollywoodiana nunca chegou a dar à prosa de Dostoiévski uma tradução cinematográfica à altura do que sua escrita produziu para a consolidação da Modernidade. 

O legado dele vai além da retidão do verbo na descrição da perplexidade humana. Sua herança mais valiosa é a postulação da tolerância como acordo moral para viabilizar a sobrevivência. É desse postulado que parte a montagem dos Karmázov em cartaz na Arena do Sesc Copacabana até 25 de janeiro. Blat assina a dramaturgia com Manoel Candeias. Tira dela uma frase que lhe (e nos) serve de astrolábio (para a vida): “Não sei o que eu faria com quem inventou essa história de Deus”.

Blindados em figurinos alvíssimos de Isabela Capeto (também responsável pela direção arte), o elenco de 13 artistas parte para cena para entender o que vai ser do nosso futuro sem lastros e sem o Rivotril da fé. O que será do mundo quando se instaurar a certeza de que “livre arbítrio” deixou de ser um patrimônio épico da Humanidade com a hipótese da Morte (ou inexistência) do Divino, do Absoluto? É Dostoiévski quem faz a pergunta. Em seu romance sobre fraternidade (ou a falta dela), o escritor desafia sua Rússia a viver sem o colete salva-vidas da existência do Senhor. Se Deus não é por nós, quem será? Fiódor Pavlovitch Karamázov, personagem interpretado com esplendor por Babu Santana na peça de Marina e Blat #squn (só que não).

Na canhestra soberba de coronel que tem, esculpida com arrogância por Babu, o patriarca dos Karamázov é o signo de um viver que a população russa desaprendeu a ter quando Lênin chegou. Antes do Outubro de 1917 (data do supracitado levante revolucionário leninista), ele era o retrato de uma mesquinharia crônica. Era um sovina orgulhoso dos tostões em sua algibeira, tratando os filhos (Dmitri, Ivan e Aliêksei), os manos do título, como fardos que dispensa carregar. A aridez com que os trata piora quando embarca numa espiral de paixão cega por Gruchénka. A personagem carrega a flama tempestuosa da transição de séculos, flertando com o empoderamento dos modernos. 

Gruchénka simboliza contornos de ruptura com a objetificação na montagem de Marina e de Blat, que assegura às atrizes Luisa Arraes e Sol Miranda sucessivas apoteoses. Delas recebemos uma ligeireza que atualiza um debate urgente contra submissões, livrando Dostoiévski de um verniz historicista de solenidade. 

A cada corrida pelas escadas da Arena do Espaço Sesc vem uma lufada de incerteza, questionando instituições (a família, sobretudo) há muito enferrujadas. Quando baixa Eurythmics em cena aí o pagode russo baixa em Copa de vez, fazendo reinar a irreverência de uma encenação inquieta, viva.  

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