- Publicidade -

“As Pequenas Coisas” é uma equação de rigor e requinte

Publicado em:

Quando um espetáculo nos entrega um exercício de argúcia (em forma de diálogo) como “chamam egoísmo de ansiedade”, não resta dúvida de que ali existe vontade, potência e ato, num trinômio que, submetido à carpintaria do realismo, produz uma autópsia em corpo vivo da sociedade ao nosso redor. A citação entre aspas acima é um dos achados que a atriz Ana Carbatti extraiu da dramaturgia do canadense Daniel MacIvor ao traduzir a peça “Small Things” ( “Pequenas Coisas” ) da língua inglesa para a coloquialidade (sem vulgaridades) dos nossos palcos. Sua narrativa faz parte da trilogia “Try”, que inclui “Communion” e “Was Spring”. O tema: vulnerabilidade(s). É desse assunto que MacIvor extraiu pérolas já encenadas aqui como “In on it” e “Cine Monstro”.

Concentrado em “inconveniências” no dia a dia de três mulheres, “Pequenas Coisas” (tradução literal de “Small Things”) se estrutura nas vias da elegância, na encenação de Inez Viana, com o design de luz de Lara Cunha a acentuar conflitos e sazonais arejamentos afetivos. A iluminação acentua o clima tenso da convivência entre as protagonistas, numa arena cenografada com fina escolha de elementos por Marieta Spada. 

 O triângulo de ação que a direção de Inez arquiteta desossa falas do tipo “a vida é como uma pétala, uma lágrima”. São, certamente, desabafos de angústia num mar de farpas que inunda a cena quando a professora aposentada Patricia (papel de Carbatti), mais conhecida por seu sobrenome (Sra. Abrantes), muda-se para uma cidade pequena. Em seu novo lar, ela contrata como governanta Berenice (Liliane Rovaris), uma mulher de origem simples, que fala pelos cotovelos, e prefere ser chamada de Nice. A contratação é apresentada ao público numa entrevista de emprego no qual o alto grau de severidade e todo o cartesianismo da antiga educadora são expostos. 

Nice é mãe de Bel (Adassa Martins, num esplendor de atuação). Jovem mãe solteira, ela cria suas duas crianças com dificuldades, mas com muito amor. Seu atual dilema é lidar com uma possível transgeneridade/não-binariedade de seu primogênito, um garoto de 8 anos que só quer ser chamado de Alice. A inspiração por um lado parece ser a heroína de Lewis Carroll, mas há, à frente de tudo, um resquício de disforia. Em seu ofício de avó, Nice rejeita ter um neto (neta ou “nete”) que rejeita convenções normativas identitárias. Como divide sua casa com Bel e suas crias, ela vive num estado perpétuo de erupção. Seu vulcão interno aquece ainda mais na interseção com Patrícia, que a trata, de início, com muita impaciência. Rusgas de classe se misturam com terremotos sentimentais domésticos.  

Uma mudança nessa relação se ensaia quando Bel precisa substituir a mãe, numa diária, na casa de Patrícia, apresentando à patroa de sua mãe o óleo de canabis como uma solução para as dores (até existenciais) que sente, galvanizadas pelas limitações de seus movimentos e pela dependência de uma bengala. Frestas de afetuosidades que eram minúsculas se transformam em vales verdejantes de tolerância conforme a sagacidade de Bel dá match com o racionalismo de armadura de uma docente reformada. 

A aproximação de ambas, nas raias da amizade, desbrava veredas para Nice se encaixar no que se impõe como um estudo da sororidade. Um estudo que nunca perder a maternidade do foco, nem os múltiplos sintomas do que alguns chamam de “contemporaneidade”, outros de “novo normal” e que, no fundo, é um porvir. 

Carbatti e Liliane alcançam covalência plena na equação estequiométrica de forças femininas que a vida surrou sem pena. Adassa é o reator nuclear que depura o som e a fúria de ambas. Taí uma peça que pega a gente pelo rigor, em todos os quesitos. 

Saiba mais sobre a peça!

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -