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Sempre Garotas traz temática universal, tratada com delicadeza

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Quando um espectador leigo pensa em cinema indiano, provavelmente, ele imagina aqueles filmes super, ultra, multicoloridos, com muitas músicas e coreografias ensaiadas até o limite. Essas produções existem, óbvio, e quase todas são rodadas em Bombaim. Elas fazem parte da chamada Bollywood, a indústria cinematográfica mais pujante do mundo, mais até do que Hollywood, de quem, por associação, tomou emprestado o nome. Todavia, reduzir a produção fílmica local a este estereótipo é um erro grave, pois a Índia que já produziu obras-primas como a “Trilogia de Apu”, do diretor Satyajit Ray, tem muito mais a oferecer. A prova disto são alguns longas bastante bonitos que estrearam este ano, como, por exemplo, “Tudo o que Imaginamos como Luz” ou, o meu preferido, Sempre Garotas, da cineasta Shuchi Talati, por sinal, objeto de análise desta crítica. 

Na trama, Mira, interpretada pela atriz Preeti Panigrahi, é uma adolescente do ensino médio, melhor aluna da turma de um colégio interno e a primeira garota a ser eleita diretora honorária, função na qual deve ajudar os professores no dia dia da instituição. Em meio aos aplausos de parabéns de sua cerimônia de posse, ela flagra a mãe, Anila, vivida por Kani Kusruti, distribuindo doces para outros alunos e se irrita, pois não é permitida a presença de pais no campus. Só que Anila é ex-aluna da mesma escola e a regra não se aplica a esses. A partir deste instante, é possível antever que mãe e filha não possuem uma relação das mais harmoniosas. O pai da protagonista, o ator Jatin Gulati, vive viajando por causa do trabalho e as duas estão, na maior parte das vezes, sozinhas em casa. 

Paralelamente, Mira conhece Srinivas, vivido pelo ator Kesav Binoy Kiron, um aluno recém chegado do exterior e com muitas histórias para contar. A protagonista não consegue esconder sua admiração por ele e logo uma amizade floresce em Sempre Garotas. Com a autorização da escola, o jovem organiza um clube de astronomia e, durante uma sessão de observação de estrelas, eles ficam ainda mais próximos. A amizade, aos poucos, vai se tornando um sentimento diferente e muito mais intenso. Anila percebe que a filha está mudada e um dia descobre o porquê. E é assim que ela decide conhecer Srinivas. Vendo que trata-se, aparentemente, de um rapaz maduro, autoriza que Mira o encontre sempre em casa, debaixo dos seus olhos, desde que não atrapalhe os estudos e não passe de uma simples amizade. Acontece que não existe no mundo ninguém que mande no seu coração e muito menos no dos outros. 

Em uma sociedade igualmente patriarcal, mas possivelmente ainda mais conservadora do que a brasileira, graças ao seu sistema de castas, a diretora Shuchi Talati precisou de uma boa dose de ousadia para conseguir realizar o filme do modo que ela imaginava. O seu atrevimento, digamos assim, reside na decisão de tratar sem repulsa ou qualquer tipo de vergonha a jornada de amadurecimento sexual da protagonista. Mesmo em filmes dirigidos por realizadoras ou feitos longe do subcontinente indiano, não é muito comum vermos mulheres se masturbando. Há um certo tabu nisso e coisas que deveriam ser mais chocantes, como a hipersexualização de outras partes do corpo, acabam soando mais naturais. Aqui, não. A masturbação feminina é mostrada com bastante naturalidade, uma vez que trata-se de algo próprio da tal jornada. E a cineasta não tinha como proceder de outra forma, já que a personalidade desenhada para as duas personagens, mãe e filha, pedia coragem no trato desta temática. 

A ousadia não para no aspecto acima. Sempre Garotas é uma história de coming of age e como tal trata do amadurecimento de Mira de uma maneira geral, não só o sexual. Ocorre que, por mais incomum que pareça o que vou escrever agora, de certo modo, podemos dizer que o longa-metragem trata igualmente do coming of age de Anila. Sim, é isso que vocês leram, da mãe. Como escrevi anteriormente, ela também estudou no internato, mas em uma época completamente diferente. E a partir do momento que Anila começa a ir mais frequentemente à instituição por causa de Mira, a impressão é de que algo acontece com ela, como se, dentro dela, uma ficha caísse ao comparar o que cada uma viveu naquele lugar. Feita esta constatação, não é exagero dizer que Anila passa a invejar Mira e, pior, a competir pela atenção de Srinivas. Uma tem 16 anos. A outra, 40 ou mais. Entretanto, emocionalmente, elas parecem ter a mesma idade, o que acaba por justificar a sensação de que estamos diante de um duplo coming of age e o título do película. 

Ganhador do Festival de Sundance de 2024, Sempre Garotas teria sido uma escolha bem interessante para representar a Índia na cerimônia do Oscar 2025. Estava na disputa também o favorito de muita gente, “Tudo o que Imaginamos como Luz”. Nenhum dos dois foi escolhido e a Federação de Cinema da Índia (FFI) acabou optando pela comédia de erros “Laapataa Ladies”. E aí, mesmo sem ter visto a obra contemplada e longe de querer desmerecê-la, acredito que o filme de Shuchi Talati talvez tivesse mais chances de comover o comitê responsável pelas indicações e os eleitores da Academia, devido a sua temática universal e a delicadeza com a qual tudo ali é tratado. Mas não foi, né? Sorte nossa. 

Desliguem os celulares e excelente diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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