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Sophie Charlotte e Gabriela Correa vivem pioneiras da psicanálise em Virgínia e Adelaide

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Diz a sabedoria popular que toda regra tem exceção, certo? Concordem ou não, eu já falei diversas vezes aqui sobre o meu pouco apego pelas cinebiografias de pessoas famosas. E é verdade, só que, às vezes, temos que dar a mão a palmatória e reconhecer o mérito de alguma coisa que, normalmente, não nos agradaria. No caso dos filmes biográficos, esse mérito pode estar ligado ao biografado, ao tema que perpassa toda a narrativa e até mesmo a escolhas de cunho dramatúrgico, técnico ou, de novo, narrativo, realizadas pelos responsáveis pela produção. Dito isso, posso dizer, tranquilamente, que o longa-metragem Virgínia e Adelaide, produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido pela dupla de cineastas Yasmin Thayná e Jorge Furtado, é uma destas belíssimas exceções. E, mais do que isso: uma belíssima surpresa também, pois, confesso, a obra estava totalmente fora do meu radar. 

 Virgínia e Adelaide

Na história, encontramos Virgínia Bicudo, interpretada pela atriz Gabriela Correa, e Adelaide Koch, vivida pela intérprete Sophie Charlotte. A primeira, uma mulher preta, neta de escravos e de italianos, formada em sociologia-política e professora. A segunda, uma mulher judia-alemã, que chegou ao Brasil, fugida do regime nazista, com o marido e as duas filhas, formada em medicina e psicanalista. O caminho das duas se cruzará após uma palestra. Por indicação de um amigo em comum, Virgínia procura Adelaide. Sua tese de mestrado é sobre o racismo no país e ela acredita que para entender os outros e os efeitos sociais do preconceito, antes de qualquer coisa, precisa entender os efeitos do racismo nela. Desta forma, Virgínia se oferece para ser a primeira paciente brasileira de Adelaide. Todavia, incialmente, a médica resolve recusar. 

As razões da recusa passam por diversos motivos, desde a barreira linguística, uma vez que Adelaide ainda não domina totalmente o português e as sessões de psicanálise dependem da comunicação verbal e da plena compreensão dos significados das palavras; até o fato dela achar que Virgínia não precisa de tratamento e de que a procurou somente para embasar sua tese de mestrado. No entanto, a insistência de uma vence a resistência da outra. E o que começa como uma relação médico-paciente, com tempo, se transforma em uma amizade para a vida toda. Mais do que isso: por influência de Adelaide, mesmo sem ter formação em medicina, Virgínia se tornará a primeira psicanalista brasileira da história e, por tabela, também uma grande influência para as gerações futuras. Existem histórias que podem e outras que merecem ser contadas, mas nenhuma é tão importante quanto aquelas que precisam, porque tem o poder de fazer a diferença na vida de outras pessoas. Esse é o caso de Virgínia e Adelaide em um país que ainda padece fortemente das chagas do racismo e do preconceito em geral. 

Contar essa história por meio do olhar das duas persongens é uma daquelas decisões que devem ser celebradas como um grande acerto. O roteiro escrito por Jorge Furtado, com colaboração de Yasmin Thayná, a partir de uma vasta pesquisa realizada por ele próprio, dá praticamente a mesma atenção às duas personagens. Como veremos no decorrer da trama, a história de vida delas se interliga por causa de algumas semelhanças bem especificas. Virginia procura Adelaide para tratar as dores infligidas pelo preconceito racial. Já a médica sabia a exata dimensão do que é ser discriminada por conta de questões raciais, uma vez que teve que fugir da Alemanha rumo ao Brasil, graças à razão de ser judia. Além disso, havia também as semelhanças circunstanciais: ao desembarcar no porto de Santos, no dia 6 de setembro de 1937, véspera do feriado da Independência, ela se deparou com manifestações patrióticas muito parecidas com as quais via e convivia em Berlim, onde morava. Era o Brasil do Estado Novo, que estava “nascendo” à luz e à semelhança da Alemanha Nazista. 

Em inglês, a palavra “mockumentary” faz referência a longa-metragens que parecem ser documentários, mas não são. Em geral, eles retratam a vida de um personagem supostamente verdadeiro. Ocorre que, na realidade, ele não existe. Um exemplo deste tipo de obra são os filmes protagonizados por  Borat, um fictício jornalista do Cazaquistão, criado pelo comediante Sacha Baron Cohen. Por aqui, podemos chamar estas obras de pseudodocumentários. Outra maneira de engendrar essas produções é fazer uso de personagens reais vividos por atores, seja simplesmente por opção, ou pelo fato dos retratados já serem falecidos, o que acontece em Virgínia e Adelaide. Assim, intercaladas com cenas dramatizadas, em que Gabriela Correa e Sophie Charlotte contracenam, vemos as atrizes depondo paras as câmeras como se estivessem depondo para um documentário real. E, em meio a tudo isso, a dupla de diretores inseriu imagens de arquivo, quase todas relevantes, e informações interessantes. Se vocês acham que Sigmund Freud foi o primeiro homem a estudar os sonhos, é porque nunca ouviram falar no filósofo grego Artemidoro de Daldis.

No decorrer dos 96 minutos de Virgínia e Adelaide, enxergamos, em cena, apenas as duas atrizes principais: Gabriela Correa e Sophie Charlotte. Os demais personagens são meramente citados. Este tipo de escolha, quase sempre, coloca um fardo pesado nos ombros dos intérpretes e aqui não seria diferente. Com grande competência, ambas tiraram de letra. Há uma forte sensação de cumplicidade e de amizade cada vez que elas aparecem. As reais Virgínia e Adelaide se tornaram amigas com o passar dos anos e à medida que a relação delas ia evoluindo. Conservaram este sentimento até o morte da alemã, em 1980, 23 anos antes da brasileira. Assim, era preciso que o público sentisse a veracidade desta relação no trabalho das protagonistas e, ao meu ver, dá para sentir. Contudo, em termos individuais, gosto um pouquinho mais da interpelação de Charlotte devido, principalmente, ao seu trabalho de composição de personagem que incluiu a emulação de um sotaque alemão, com as características de quem chegou faz muito pouco tempo do exterior. 

Desliguem os celulares e excelente diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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