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Pedaço de Mim: Um drama delicado e agridoce

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Eu tenho uma vaga memória em relação ao relacionamento que minha tia Suzel tinha com o meu primo André. Vaga muito mais por causa da distância do que pela idade, uma vez que a gente era do mesmo ano de 1977. Não sei se ele era neurodivergente, mas sei que ela vivia em função dele. Meu primo faleceu antes da minha tia e apesar dela ter sofrido bastante com a perda do filho, me recordo do meu pai comentar que, enfim, ela poderia descansar um pouco. Assistindo ao longa-metragem francês Pedaço de Mim, de Anne-Sophie Bailly, todas essas lembranças afloraram na mesma hora. Nunca estive na pele da minha tia, todavia, conheço sua história e conheço outras pessoas que vivem situações parecidas e por isso tudo me sinto livre e tranquilo para dizer que a cineasta francesa conseguiu conceber e realizar uma obra que vai emocionar muitas pessoas.

Na trama, Mona, vivida por Laure Calamy, vive em um apartamento pequeno com o filho, já adulto, Joël, papel de Charles Peccia-Galletto. Ela trabalha em um salão como massagista e ele é funcionário de uma fábrica. Portador de algumas necessidades especiais por ser uma pessoa neurodivergente, o jovem leva a vida mais normal possível. Tanto é que tem uma namorada, Océane, a atriz Julie Froger, sua colega de trabalho e também neurodivergente. Crescidos e apaixonados, como denotam os olhares de cumplicidade pelos corredores do local onde trabalham, eles se iniciarão na arte do amor juntos. O resultado será uma gravidez inesperada, mas festejada pelo casal de namorados. Muito mais preocupados ficarão Mona e os pais de Océane, Gabriel e Nathalie, respectivamente Pasquale d’Inca e Rébecca Finet, que apesar de saberem do namoro da filha com Joël, não faziam a mínima ideia do grau de seriedade da relação amorosa. 

De forma proposital, a revelação da gravidez de Océane não acontece muito depois do começo de Pedaço de Mim. O intento do roteiro escrito pela própria diretora, que se inspirou em um caso real, testemunhado por ela quando ainda era adolescente, foi explodir a bomba logo de cara e apreciar os efeitos colaterais. E aí, é claro, nenhum dos pais estava preparado para a rebordosa que viria em seguida. Cada um lida de um jeito, da sua maneira, com a notícia e neste exercício de observação que é delegado ao público, é interessante prestar atenção na forma como se comportam os intérpretes. Pasquale d’Inca é quem tem menos tempo de cena. No seu instante de maior holofote, ele faz um pai em negação e que profere ameaças de um desesperado. Já Rébecca Finet exerce o contraponto. Sente o golpe, mas logo aceita as coisas como são diante do desejo da filha em levar a gestação até o fim. É uma atuação tranquila, segura. Agora, ainda mais digna de observação é a interpretação de Calamy. 

Laure Calamy é apenas onze anos mais nova do que Juliette Binoche, que para este crítico trata-se da maior atriz francesa de todos os tempos e uma das grandes da história da Sétima Arte. E, de alguma forma, talvez, muito particular, Calamy me lembra Binoche onze anos atrás. Nem tanto pelo filme que a segunda lançava na época, “Acima das Nuvens”, mas pela maturidade atingida por ambas em uma carreira bastante prolífica aos 50 anos de idade. E ai, maturidade significa, entre outros aspectos, uma capacidade ímpar de entrega cênica. Calamy mergulha no papel da mãe que vive para o filho, que abdica de sua vida pessoal estoicamente, mas sempre deixando transparecer que está no limite. E quando ela chega à este limite e tem a chance de cruzá-lo, o que acontece? Ela o cruza e por um par de horas é como se não tivesse mais todas aquelas obrigações. O peso dá lugar a leveza que, por sua vez, gera uma explosão emocional de choro, lágrimas e pés descalços em uma rua fria qualquer da Bélgica. 

Outro elemento catalizador das emoções de Pedaço de Mim é a fotografia assinada pelo  diretor Nader Chalhoub. Assim como em Entre Dois Mundos, os dias todos nublados e frios ajudam a fortalecer a sensação de opressão, de angústia, de intranquilidade quando as coisas não estão bem ou quando essas fugiram completamente do planejamento, como, por exemplo, uma gravidez inesperada. Dias solares sempre transmitem a impressão de que no fim, tudo se ajeitará. Dito isso, o filtro utilizado por Nader Chalhoub atua no sentido de realçar as cores dos dias e as sensações provocadas por esse combo imagético. 

Entretanto, fotografia não é feita somente de paletas de cores e filtros, mas de ângulos e de enquadramentos também. E foi de uma dessas escolhas de câmera com o objetivo de mostrar Joël no meio de uma multidão, vendo um desfile carnavalesco em uma pequena cidade belga, que deriva uma das melhores e mais impactantes imagens que vi este ano em uma sala de cinema. O rapaz se separou da mãe e está perdido. A lente da câmera o enquadra de perto. Um rosto com olhos vidrados na beleza do cortejo. Quase não reparamos na alegria dos demais. Só nos olhos e na boca, que trincada não sorri. Porém, à medida que a câmera se afasta, aquele rosto vai diminuindo em proporção ao povo a sua volta. Esta imagem não é apenas bela, ela é repleta de significado, uma vez que enfatiza a pequinês e a solidão do jovem perdido. Ele pode ser pai, contudo, talvez não consiga andar totalmente sozinho. Como será a partir de agora com a chegada de um filho e uma família para sustentar? 

Pedaço de Mim retrata o amor mais sagrado e puro que pode existir, o amor de uma mãe pelo seu filho. Ocorre que este não é um retrato qualquer, dada a condição de Joël. Repito o que escrevi lá no primeiro parágrafo: não tenho um filho, muito menos um com alguma condição especial, logo, não tenho lugar de fala. Contudo, de acordo com o que eu consigo lembrar da relação da minha tia com o meu primo e pelo que vejo em outras situações cotidianas, a cineasta Anne-Sophie Bailly foi muito feliz na hora de conceber e realizar esta história. Somada à sua fina sensibilidade, os inegáveis méritos técnicos e um elenco afinado garantem que o resultado final seja delicada e forte, descambando em uma mistura deliciosamente agridoce. 

Desliguem os celulares e excelente diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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