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Uma Bela Vida faz relato sobre a vida e a morte

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Escrever sobre qualquer coisa não é fácil. Por mais que você tenha o dom da escrita, tem vezes que as ideias não surgem ou, se surgem, elas não tomam uma forma clara. Na crítica cinematográfica, há quem prefira escrever sobre as bombas. Eu gosto mais de falar sobre os filmes que me tocam e pelos quais fico apaixonado. Só que, às vezes,  mesmo estas obras impõem uma barreira e a escrita simplesmente não versa. Mesmo sendo Uma Bela Vida, do cineasta franco-grego Costa-Gavras, a produção que mais me tocou desde A Pior Pessoa do Mundo, as palavras para começar esta análise não vinham. Então,  foi assim que decidi seguir o conselho de um personagem do longa-metragem em questão: o melhor remédio contra bloqueios criativos é escrever a primeira coisa que vier à cabeça. Simplesmente escreva e depois ajuste tudo. Apenas não fique parado.  

Costa-Gavras está de volta aos cinemas, após seis anos de hiato. Com uma filmografia rica, marcada por uma abordagem crítica, intensa e engajada sobre temas como autoritarismo, repressão estatal, corrupção, totalitarismo e injustiça social, mostrando todo o seu viés político, aqui ele vai por um caminho diferente e Uma Bela Vida revela, talvez, o seu lado humano mais frágil e sentimental. Na história, Fabrice Toussaint (Denis Podalydès) é um filósofo que está preocupado com sua própria saúde. Após um exame de rotina, ele descobre a existência de uma mancha no pulmão. A princípio, dizem os médicos, não é nada. Porém, ele desconfia e resolve fazer outros exames. Em uma dessas oportunidades, conhece Augustin Masset (Kad Merad), um médico especialista em cuidados paliativos. A partir daí, os dois travam uma grande amizade que influenciará na forma como o protagonista encara a morte. 

Com um roteiro baseado em um livro escrito pelo filósofo Régis Debray e o médico Claude Grange, Uma Bela Vida, que em francês se chama Le Dernier Souffle (O Último Suspiro), traz uma série de relatos sobre casos de pacientes em estado terminal. São casos reais que, ainda que tenham sido levemente romanceados ou que não usem os nomes verdadeiros das pessoas, conferem uma grande força à linha narrativa da película como um todo. Os casos são relatados por meio da visão de um especialista (Masset) e ressignificados por meio dos olhos de um leigo e potencial paciente (Toussaint). O fato do segundo ser um filósofo acostumado a escrever sobre a natureza humana só dá mais ferramentas para que ele descodifique tabus e medos próprios de pessoas nesta situação. O público, por sua vez, consegue olhar para estes casos de uma forma um pouco mais serena. Pelo menos comigo funcionou. 

Em fevereiro, eu perdi um amigo que recém completara 49 anos. Quase dois anos mais velho do que este crítico e vítima de um câncer assim como alguns dos casos que são mostrados em Uma Bela Vida. De lá para cá, não existe um dia sequer que eu não pense no assunto e não me imagine em uma situação análoga. Tenho medo, tenho receio, como Toussaint também tem ao longo das quase duas horas de filme. Acontece que, à medida que ele vai conversando com o doutor Masset, este medo vai desanuviando. O filme tem um efeito tão terapêutico quanto o modo como o especialista relata os casos para o leigo. Não será surpresa se, ao término da sessão, ao olhar para os lados, vocês se depararem com rostos amassados e olhos avermelhados

Costa-Gavras não inventou na hora de filmar. O longa-metragem não conta com nenhum arroubo criativo. A fórmula é simples e eficaz: uma conjunção de um texto sólido, muito bem adaptado pelo próprio diretor, com atuações seguras, principalmente dos protagonistas. O filósofo de Podalydès espelha a fragilidade, mais do que natural, que todos tendemos a ter diante de uma possibilidade nefasta. Um velho conhecido dos meus primeiros anos como crítico, eu o assisti em 2013 no delicioso Aconteceu em Saint-Tropez, Merad traduz a calma do médico que tem a mais dura das missões. Como ele explica, existem três tipos de medicina: a preventiva, a curativa e a paliativa. A última, a que ele desempenha, só entra em cena quando não há mais nada que possa ser feito. O médico, então, precisa acolher, acalmar e ser afetuoso enquanto procura tornar aquele momento um pouco menos sofrido, afinal, doloroso sempre será. E o ator parece talhado para a missão. 

Uma Bela Vida é um filme recheado de cenas e de instantes que, se não carregam o tal arroubo criativo citado anteriormente, pelo menos, mostram como a direção de Costa-Gavras segue, depois de tanto tempo, sendo segura e sensível. A cena que uma cigana entende que sua hora chegou e pede para que a sua família se despeça com uma música, me fez verter algumas lágrimas e quase dançar no cinema. E há ainda outros momentos tão especiais quanto essa bela tomada. Se entre os meus leitores houver alguém que aprecie ostras e vinho branco, talvez essa pessoa seja acometida de uma vontade súbita, após a sessão, de correr até o restaurante mais próximo, claro, desde que em sua cidade haja um que comercialize ostras frescas – isso pode, de fato, ser um problemão! 

Parodiando o título de uma peça que diz que trair e coçar é só começar, o mesmo vale para escrever. Talvez o meu bloqueio criativo, na hora de colocar no papel as minhas ideias sobre Uma Bela Vida, tivesse muito mais a ver com as coisas que tenho sentido e pensado nos últimos cinco meses do que com qualquer outra coisa. Talvez os espectadores deixem as salas de cinema pensativos, travados e com dificuldade de voltar à rotina normal. Existem filmes feitos com o objetivo de entreter e está tudo bem. E existem filmes que exigem um pouquinho mais das pessoas. Costa-Gavras sempre exigiu, mas aqui, talvez, ele mexa e provoque coisas que nunca mexeu ou provocou antes e também está tudo bem. Este é um filme que, paradoxalmente, fala sobre a morte, mas que manda as pessoas viverem a viva enquanto há tempo. Eu, de minha parte, só tenho a agradecer. Muito obrigado, diretor. 

Desliguem os celulares e excepcional diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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