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Novo filme de Kathryn Bigelow aborda o racismo policial nos Estados Unidos

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Em uma entrevista, após os acontecimentos de Charlottesville, Virgínia, Kathryn Bigelow responde a um jornalista, em uma entrevista para o The Guardian  quando questionada se a atual crise do racismo americano a assusta que “O medo não é uma opção” e que ela se sente compelida a “Fazer o que eu puder a respeito. E usando o meio que estiver a meu alcance para fazer isso”.

A resposta de Bigelow me parece suficiente para ilustrar o lugar de onde ela fala. Lugar que, por acaso, é quase o mesmo de onde eu escrevo meu texto sobre seu filme. Um lugar de privilégio, que reverbera nas escolhas feitas por ela na construção de sua narrativa e, provavelmente, também vai refletir no meu texto. Um lugar de onde não é preciso ter medo porque não corremos o menor perigo real, sendo mulheres brancas de classe média, no caso dela classe alta. Assim como não correram riscos de vida reais as mulheres brancas presentes no seu filme. Já o mesmo não se pode dizer dos demais personagens e pessoas reais envolvidas na história.

Famosa por escolher para seus filmes temas ambiciosos e muito polêmicos, ela escolhe o recorte da rebelião de Detroit em 1967, mais especificamente, os acontecimentos que se desenrolaram durante essa rebelião, no motel Algiers, para abordar a questão do racismo policial nos Estados Unidos.

Para dar início a sua narrativa, Bigelow faz uma espécie de resumo introdutório que tenta levar o expectador rapidamente ao momento em que o filme se passa, quando uma ação policial feita de maneira desproporcional desencadearia uma rebelião em um bairro negro de Detroit, que ficaria conhecida também como a rebelião da Rua 12.

Infelizmente, apesar de funcionar narrativamente, o que falta é o sentimento. Falta o sentimento de quem, entre muitas coisas, tem sim medo, diariamente. O sentimento de quem sofre e corre risco real. O sentimento de quem sofre perdas diárias que eu ou Kathryn Bigelow jamais seríamos capazes de entender e que seríamos até incapazes de perceber em sua totalidade.

 Apesar das supostas boas intenção da diretora é possível perceber uma superficialidade emocional que, juntamente com o maniqueísmo comum de suas obras e o que parece ser uma visão limitada de algumas situações resulta em muitos momentos que reproduzem estereótipos e fazem com que a história perca a capacidade de explorar um problema enraizado e institucionalizado.

O oficial Krauss, interpretado magnificamente por Will Pouter, representa tudo que há de errado com o filme. Ele representa o mal. Todo o mal. Tudo de errado está contido na figura de uma única pessoa má. Momento em que o filme perde a grande oportunidade de criticar e apontar o dedo pro que de fato há de errado, que é o que está mais enraizado e institucionalizado. Perde a oportunidade de abordar o fato de que o racismo que está em todos nós que não precisamos sentir medo dele.

É claro que, pessoas, injustamente, sendo torturadas e vivendo tudo que vimos se desenrolar dentro da casa onde esses jovens foram abordados, nos causaria desconforto e, quiçá, revolta. Ficaríamos desconfortáveis qualquer fosse a cor de suas peles. Mas o que deveria causar desconforto é ignorar o quão ampla é essa questão.

Ao se focar em um vilão, tudo é muito menor.  Quando conseguimos colocar toda a culpa em uma única pessoa e nos vemos como superiores e alheios a esse racismo que mata diariamente, as boas intenções se perdem.

“Ah, mas aquele policial era racista”. E assim ele é retratado, inclusive é chamado assim durante o filme. E dessa forma todo o resto é suavizado. Suavizado também por uma série de outros personagens brancos que são “bonzinhos” e ficam assustados com a crueldade dele ou são simplesmente influenciáveis. O famoso retrato da célebre frase “Ah, mas não podemos generalizar, nem todo policial é assim!”.

Com diversos pequenos detalhes como esse, o filme de Bigelow acaba por reforçar, muitas vezes, o discurso reproduzido pela mídia sobre situações como essa, desmerecendo o lugar de onde reage todo um povo forjado na dor. Fazendo com que em pequenos detalhes fique a sensação de que a culpa é daquele homem negro que com sua brincadeira boba acabou causando aquilo tudo; ou daquele policial que estava na batida que desencadeou a rebelião; ou que apesar de desproporcional, talvez ele não estivesse tão errado, já que eles estavam destruindo o próprio lugar onde moravam; ou, ele morreu porque estava roubando; porque eles estavam rindo, bebendo e saqueando o que faz com que a rebelião perca um pouco a legitimidade, já que eles não passavam de vândalos; porque sua rebelião acabou prejudicando muitos outros negros, inclusive o personagem vivido por Algee Smith, que perde a chance de realizar seu sonho.

A incapacidade, ainda que cheia de “boas intenções”, de apontar o dedo pra nós mesmos, ao invés de colocar um personagem mal pra ser responsável, é um problema grave em um filme que tem como pretensões alertar sobre as questões raciais. É claro que percebemos a desproporcionalidade no julgamento, também representado por UM advogado “inescrupuloso”, interpretado por John Krasinsky, que com sua astucia é capaz de conseguir o inimaginável.

Apesar de ser um filme tecnicamente muito competente e de atuações muito inspiradas, que é, sim, capaz de nos causar indignação pelas situações vividas, de abordar um assunto atual e de possuir alguns acertos, a pretensão de levantar a questão racial de um lugar que não conhece ou entende, faz com que Detroit em rebelião seja um filme equivocado.

Outra coisa preocupante, a meu ver, é a quantidade de aval que recebe e receberá de tantos outros, que falamos de um espaço que não é o nosso. Porque é mais fácil perceber essas críticas como distantes de nós do que admitir nosso lugar e culpa nesses acontecimentos.  Até que consigamos apontar o dedo na nossa direção o que quer que seja Tudo que estiver ao alcance de Kathryn Bigelow, ainda será muito pouco.

 

 

 

 

 

 

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