Good Boy é uma máquina de estranheza sobre afeto

De tempos em tempos, a comunidade cinéfila é assolada por um filme estranho, meio desajustado, que consegue furar uma zona de conversa mais restrita e transformar-se em uma espécie de fenômeno cultural externo. A última vez tinha acontecido exatamente esse ano, lá no início dele, com um título chamado Skinamarink, um filme de terror todo passado em uma casa escurecida e protagonizada por crianças de quem só ouvimos as vozes. Para encerrar 2023, o cinema recebe Good Boy, que mexeu com quem assistiu ao trailer e deixou todos curiosos.

O filme é dirigido pelo jovem Viljar Bøe, que está ainda construindo uma carreira, sendo esse seu terceiro longa – e o primeiro tem apenas três anos de lançado. Good Boy é modesto em escopo, mas gigante na quantidade de reflexão que sugere a respeito dos caminhos que a humanidade traça para perder justamente qualquer traço humano que ainda resida nela. Não se trata de uma ideia misantropa, porque o filme olha especificamente para um homem e seu melhor amigo, e ele não tem um dedo em riste apontado em sua direção. O que existe de verdade é uma vontade de mostrar que o desajuste social não está explícito no corpo de alguém, ou em suas atitudes e manias.

Podemos dizer que Good Boy tem apenas quatro personagens em cena: Sigrid e sua amiga Aurora, Christian e seu amigo Frank. As moças procuram um amor, e o Tinder pode ser uma resposta a essa busca, mas quando Sigrid conhece Christian, talvez ela perceba que os aplicativos de relacionamento podem ser um pesadelo. Toda a percepção promissora que teve ao conhecer Christian, desce pelo ralo quando Sigrid é apresentada ao amigo do seu pretendente, que não passa de um cachorro – ou melhor, não um cachorro qualquer. Toda a narrativa do filme está em trailer e sinopse, e embora eu seja contra spoiler, a essa altura você já sabe que Frank não é um cãozinho dócil, mas um homem vestido de cachorro, que age como tal o tempo inteiro.

Apesar da claridade empregada em cada setor, se tem um filme que é sombrio, esse filme é Good Boy, e nem teria como ser diferente. O filme acaba por resplandecer algo da cultura escandinava por um olhar carregado de um peso de sua atmosfera, com narrativa específica, que usa do peso local para conversar com uma paranoia mundial. Trazendo uma ideia que perpassa o medo da solidão e uma necessidade de controle absoluto sobre o que não pode ser controlado: o afeto alheio. Quando percebemos que o filme não é apenas uma máquina de estranheza e analisamos o produto como um todo, com seus méritos e ausências, sai de cena a possível bizarrice para entrar algo mais substancial.

Esperar uma reviravolta de Good Boy é algo que qualquer espectador fará, o complexo é compreender para que lado a produção vai, que não é necessariamente a esperada. Quando o filme centra o trio protagonista em um chalé isolado da cidade, sabemos que aquele é o prenúncio do desfecho, mas o roteiro de Bøe é inteligente em também não transformar seu filme em refém de ‘plot twist’.

A quem espera por um rompante, Good Boy não é um filme que vá descambar para a violência, então é bom já não esperar por ela. Podemos dizer que o filme une tais tipos para nos mostrar espelhos do mundo, e em que lugar nós seríamos relacionados diante do quadro. É preciso uma luta diária para não se transformar em vítima do que nos oprime, e se o pio acontecer, estar preparado para mudar o quadro o mais brevemente possível.

Opressivo sem arrastar seus propósitos por muito tempo (estamos falando de um desenvolvimento de menos de 75 minutos), Good Boy não pode ser chamado de passatempo, por sua textura social que precisa ser respondida. Mas por trás de um alerta social e de um estranhíssimo filme de terror psicológico, se esconde um filme híbrido que tem o seu público. Que as pessoas possam assisti-lo para identificar a quantas anda sua responsabilidade afetiva, e que não devemos arrastar vida afora personagens que já deveriam ter caído fora dela.