- Publicidade -

Coringa: Delírio a Dois requenta no fogo do moralismo as culpas do maior vilão de Gotham

Publicado em:

Depois da graphic novel “A Piada Mortal” (1988), de Alan Moore e Brian Bolland, o Coringa ganhou um outro status nas histórias em quadrinhos, num momento em que as artes gráficas passavam por uma reformulação dramatúrgica, em sua linha mais industrial (as tramas sobre super-heróis), adquirindo uma vertente mais adulta, mais politizada, provocada por “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, “Sandman”, “American Flagg” e “Watchmen”. No fim da Era Reagan, aquele álbum de Alan + Brian retrata a origem do Palhaço do Crime contextualizando-o como psicopata, e não mais como (só) um bandido excêntrico.

Coringa: Delírio a Dois

A trama de Coringa: Delírio a Dois leva o filme à raia da bestialidade ao aleijar a filha do comissário Gordon, Barbara, na mesma noite em que submete o policial a torturas. Era o fim de qualquer inocência para as tramas do Homem-Morcego e uma ruptura com a visão romantizada do crime de Jerry Robinson (1922-2011), cartunista que criou o inimigo n°1 de Gotham City em 25 de abril de 1940. Foi a partir desse redesenho que Todd Phillips começou a esboçar a figura que rendeu um (merecido) Oscar a Joaquin Phoenix em “Joker”, o ganhador do Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2019.

O realizador de Se Beber, Não Case (2009), Todd Philips apresenta um roteiro escrito a quatro mãos com Scott Silver, esmiuçando um lastro psicótico deixado por Moore e Bolland aproximando-o da tese de Antonin Artaud (1896-1948) sobre “O Suicidado da Sociedade”. Nela, o vetor de opressão da vida comunitária, numa rotina de exclusões, é capaz de relegar um indivíduo à dor, ao isolamento, à violência levando-o a reações desmedidas. A maior riqueza do filme de Phillips era fazer do Coringa a sequela mais danosa dessa conduta social, ou seja, a monstruosidade que resulta da escassez de empatia. Não é que depois de todo o sucesso e toda consagração, o cineasta se arrisca a negar isso numa continuação que se afoga no moralismo.

Exibido pela primeira vez na competição oficial pelos felinos dourados e prateados de Veneza deste ano, projetado na sequência no Festival de San Sebastián, Coringa: Delírio a Dois (no original “Joker: Folie à Deux”) regressa à década de 80 para explorar o que se passou com o comediante Arthur Fleck (papel de Joaquin) após sua prisão por um assassinato televisionado em rede nacional. Nas HQs, o nome do personagem é Jack Napier (e, em reformulações, Jack Oswald White), mas Phillips parece querer se afastar plenamente de marcos quadinísticos.

A narrativa agora se bifurca entre o drama carcerário e o suspense jurídico. Parte do longa-metragem se concentra nas celas e nos corredores do Asilo Arkham (instituição psiquiátrica para bandidos de Gotham) e a outra parte se desenrola no tribunal onde Fleck é julgado. Há um terceiro plano de ação, onírico, que contempla os devaneios do protagonista, estruturados como musical, revisando standards da canção americana. É neles que Lady Gaga melhor entra.

Um dos chamarizes da produção é a presença da cantora e atriz num papel que deveria ser o da vilã Arlequina, antes celebrizada na atuação de Margot Robbie na franquia Esquadrão Suicida (2016-2021) e no malfadado Aves de Rapina (2020). O “deveria” aí é importante, pois a figura que Lady Gaga interpreta não é exatamente a psiquiatra Harley Quinzel, alter ego da criminosa com jeitão de colombina, sequer chegando a realizar assaltos ou assassínios tal qual a ferrabrás dos quadrinhos faz. Vale repetir: as HQs aqui não são bem-vindas e Bruce Wayne sequer é citado.

Sobrou para Lady Gaga o papel totalmente periférico de uma paciente de baixa periculosidade do Arkham  que se encanta pelo simbolismo libertário dos atos do Coringa/Fleck. As mortes que ele cometeu no longa anterior inspiraram uma onda anarquista numa Gotham áspera, que convulsiona em meio à insegurança pública. Em sua fantasia circense, ele vira um mártir dos desvalidos e dos desamparados. A maior potência de Coringa (2019) era abrir o debate sobre o grau de desamparo que eleva um monstro à condição de ícone. O maior (dos muitos) erro(s) de Coringa: Delírio a Dois é negar essa dimensão, fazendo Fleck despertar para uma culpa que soa mais como um corretivo moral do que como um processo de humanização crível. Para piorar, Joaquin não consegue acrescentar nada de novo ao modo de atuar do longa anterior, reproduzindo situações e desperdiçando o dispositivo sinestésico da gargalhada de nervoso (e descontrole) que o caracterizou. Sua performance parece empalidecida, sem o vigor de antes.

As interpretações satélites são, em sua maioria, igualmente mal desenvolvidas. Lady Gaga, por exemplo, não tem tempo de tela para esmiuçar os meandros de Harleen Lee, embora brilhe a mil sempre em que canta nos números canoros. Esses números são dirigidos com requinte por Phillips, estabelecendo uma conexão alusória imediata com “All That Jazz – O Show Deve Continuar” (Palma de Ouro de 1980). Tão outonais quanto o cult de Bob Fosse (1927-1987), no qual um coreógrafo (Roy Scheider) era acossado pela Morte, as sequências musicadas de “Folie à Deux” narram a ascese do romance de Fleck e Harleen, descambando para um processo (nem um pouco convincente) de iluminação, no qual se toma consciência de sua doença. Todas têm uma inegável elegância em sua direção de arte, realçada pela fotografia de Lawrence Sher (parceiro recorrente de Phillips), que repete o mesmo padrão de luz da longa original, com novos efeitos de chiaroscuro. Esse refinamento, contudo, não abranda o fato de elas nunca estabelecerem uma relação de essencialidade ao todo do enredo, soando supérfluas, soando como se fossem um alívio descartável, justificado só pela presença estelar de Lady Gaga.

Igualmente supérfluo é o introito animado, com visual de “Looney Tunes”, que abre o filme. Essa introdução se esforça (em vão) para traduzir em imagens a dualidade entre Fleck e o Coringa, uma dicotomia que depõe contra o relato do filme original. Não são duas personalidades e, sim, a evolução (ou involução) de uma psique fraturada por uma cidade hostil, numa provocação que se perdeu. Além disso, perde-se ainda a chance de valorizar presenças de peso no elenco. Brendan Gleeson, por exemplo, tem seu talento mal aproveitado na figura do guarda Sullivan, que prometia ser um coadjuvante de luxo e não passa de um ente narrativo sem nada a somar. Nessa mesma linha, o mesmo se passa com o repórter com sanha de abutre, faminto por carniça, vivido por Steve Coogan. Além disso, buraco fica ainda mais fundo em Coringa: Delírio a Dois, quando se fala em Harvey Dent, um promotor que, nas HQs (e na trilogia “Batman”, de Christopher Nolan), era o assassino Duas-Caras. Ele é o nêmese judicial de Fleck, mas jamais consegue realce em cena por culpa da insossa interpretação do ator Larry Lawtey. Surpreendetemente, porém o que sobra dessa colcha de retalhos sem remendos é a frustrante sensação de gratuidade dessa “parte dois”. Certamente, o espírito transgressor de Phillips foi represado em Coringa: Delírio a Dois.

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
3.870 Seguidores
Seguir
- Publicidade -