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A história do samba se mistura com a história da Mangueira

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Samba, carnaval, caipirinha, feijoada, alegria. A construção da imagem brasileira mundo afora, acrescentando algumas notas sexuais aqui e ali, passa fortemente por esses símbolos. Poucas vezes paramos, não só como povo, mas como indivíduos, para nos perguntarmos como chegamos onde estamos? Como chegamos a ser exatamente quem somos? Que histórias, que escolhas, o que ficou pelo caminho, que caminhos?

Mais uma vez nos deparamos com a importância da memória, a importância da história e dos arquivos para a construção e compreensão da nossa identidade. A importância do cinema como instrumento de resgate e construção de uma memória à beira do esquecimento.

Hoje em dia, com facilidade, ouvimos um samba e refutamos a ideia de sermos representados pelo ritmo. “Ah, mas o Brasil não é só Samba. Eu mesmo nem gosto de samba”.
Sistematicamente renegamos os processos de formação da nossa identidade cultural, porém o fazemos de forma seletiva. Uma colonização tão bem-sucedida que massacra por tempo indeterminado o orgulho daquilo que é essencialmente nosso, para além dos nossos colonizadores. O “orgulho” da miscigenação se restringe à migração europeia, enquanto as marcas presentes da cultura negra, pobre, indígena são continuamente rechaçadas.

Assim, mais uma vez, no discurso da classe média, o samba é marginalizado. As quadras das escolas estão cheias, as arquibancadas do sambódromo, as ruas por onde passam os blocos atrás dos quais se canta alegremente os sambas, as rodas de samba pela cidade arrastam pequenas multidões, mas devem se limitar a isso. Que pretensão, querer nos definir, como se fosse parte da nossa cultura.

O samba sempre foi marginalizado. Marginalizado e perseguido. Fazer samba era sinônimo de vadiagem. Coisa de negro, escravo, de quem não arrumava trabalho, tudo da maneira mais pejorativa possível. Se fosse pego fazendo samba, era preso. Para sobreviver o samba por muito tempo se escondeu nos terreiros. Se a polícia chegasse se fingi estar “batendo um tambor”.

A história do samba se mistura com a história da Mangueira. “Os Arengueiros (Bloco que originou a Mangueira), fundado por Cartola, Saturnino, Carlos Cachaça, Zé Espinguela, Fiúca, Homem Bom, Chico Porrão, Antunico, Arturzinho e Zé Boleiro. Era um grupo em que os integrantes estavam dispostos a tudo, a bater e a apanhar. No carnaval, os Arengueiros saíam a pé da Mangueira até a Praça XI, arrumando confusão pelo caminho, fazendo jus ao nome escolhido, já que arengueiro era sinônimo de sujeito que gosta de uma boa intriga”, no livro “Divino Cartola” de Denilson Monteiro, ele conta com riqueza de detalhes como o conhecido “bloco do sujo” com o samba “Chega de demanda”, daria nome a primeira escola de samba. E assim chegou, a mangueira chegou.

O documentário constrói muito bem, através da música, relatos e algumas imagens de arquivo, uma linha temporal que acompanha o samba desde o surgimento da escola em 1928.É emocionante acompanhar pelas ruas da favela e ouvir, ainda que, as vezes com dificuldade, àqueles que nasceram com o samba, que se forjaram através do samba e junto com sua história através dos anos.

Na época em que o samba se fazia na rua. A rua, a favela que se opõe ao asfalto em, praticamente, tudo, como dizem os versos de Pandeirinho e Ferreira do Santos, eternizados na voz de João Nogueira, ”No morro tudo é diferente”. As noções de comunidade, o telefone que todo mundo usava, as crianças que todo mundo tomava conta e o próprio samba, que ia ganhando força na voz das mulheres enquanto lavavam roupa e subiam cantando com as latas d’água na cabeça.

Entre causos e relatos de vida, esses mestres na arte da vida, com todo seu conhecimento e inteligência emocional e musical, nos dão uma aula de música, de samba, de vida. É tanto conhecimento de vida, de música, de samba, sem que a maioria jamais tenha estudado formalmente. Ao longo de quase 1 hora e meia Tantinho, Delegado, Nelson Sargento, Hélio Turco, Pandeirinho e tantos outros vão nos revelando esse samba que está além das quadras, cheias de gringos(não só de outros países, mas os de fora da favela) , feijoadas e caipirinha, mas um samba que tem alma, ou, pelo menos, tinha.

O samba desceu o morro, com ajuda do Zicartola, que abriu as portas do morro para os universitários, com ajuda da Elizeth Cardoso que subiu o morro e Nelson cavaquinho, o porta voz do samba. Assim o samba aos poucos chegou às casas da classe média, não mais só através dos porteiros e das empregadas, mas agora o samba explode no asfalto e, a antiga rejeição dá lugar à um novo fascínio.

O samba vira um negócio, se começa a cobrar ingresso, e quando a classe média, invade, as mudanças começam, logo de cara, com o samba de terreiro, que chega ao fim. A maneira como Pedro Von Kruger dirige o documentário, deixa nitidamente transparecer essas mudanças, a frieza e distanciamento no olhar daqueles que são peças que parecem não se encaixar, de um tempo, que já faz muito parece ter ficado para trás.

A mangueira, o samba, perdeu a familiaridade. Ao se olhar em volta, não se vê mais os vizinhos, amigos, irmãos de vida. Se vê muitas pessoas, muito dinheiro, muitos rostos, porém, todos estranhos. “Se a classe média quiser acabar com uma coisa, não deve proibir, mas entrar nela”.

O filme de Pedro Von Kruger, está longe de ser um filme só sobre a mangueira. É um filme sobre o Samba, sobre memória, sobre lições de vida, sobre transformações. O filme explora muito bem o arco narrativo da história do samba e de alguns de seus protagonistas da alegria dos primeiros dias à tristeza e solidão do tempo e das mudanças. O filme constrói um importante arquivo de construção e resgate das nossas memorias e cultura.

O samba e a vida na favela eram uma coisa só. A mangueira e a vida dessas pessoas eram uma coisa só. Não mais. A mangueira, o samba, deixou de ser daquelas pessoas, e elas continuaram a ser Mangueira.

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