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As Órfãs da Rainha tem vocação histórica com uma tradição da teledramaturgia

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Se já é raro acompanharmos produções do nosso cinema que deem conta do período pós “descobrimento do Brasil” (ou, apenas do episódio onde os portugueses chegaram para tomar algo que não era deles), imagina se somos agraciados com os muitos desdobramentos históricos que surgiram no período. Existe um recorte onde grupos de judeus fugidos da perseguição da Inquisição na Europa vieram para cá em busca de um lugar onde pudessem ser livres, e As Órfãs da Rainha se insere nesse cenário onde pouco foi documentado no audiovisual. É, acima de tudo, de uma bruta coragem que esse filme tenha sido sequer produzido, e estar de frente para ele agora em seu lançamento é sinal de que nosso cinema está cada vez mais diverso – embora ainda falte bastante para alcançarmos o ideal.

As Órfãs da RainhaDirigido e escrito (ao lado de Pilar Fazito e Newton Cannito) por Elza Cataldo, o filme é tão cheio de curiosidades, que o interesse é amplamente garantido até o seu final. Uma produção de requinte inquestionável em seu material cênico como raramente o país vê ser produzida, As Órfãs da Rainha é um projeto que poderia ser didático com sua matéria, mas o filme é mais interessado em nos levar para dentro de sua dramaturgia, dos valores que apregoam seus personagens e das costuras que permeiam cada um dos seus dramas. Iniciada em 1588, essa saga feminina familiar judaica transporta o espectador a não apenas uma outra época, como a um contexto social que radiografa as tradições deles, e mostra que certos hábitos nunca mudaram.

Diferente do que temos visto nas últimas semanas, esse é um título protagonizado por mulheres, absolutamente feminista e, ainda bem, dirigido por uma mulher. Isso parece óbvio ou menor, mas temos visto estreias de títulos nacionais cujas protagonistas femininas e suas questões são absolutamente comandadas por homens, e isso reflete no tratamento dado a cada uma das curvas dos filmes que se atrelam a isso. Aqui em As Órfãs da Rainha, no entanto, cada uma das três protagonistas e mesmo suas coadjuvantes, estão cada uma envoltas em contornos diferentes ligados ao seu gênero, incluindo a pena que serão atribuídas a seus ditos pecados – aplicados, logicamente, por homens.

Ao mesmo tempo, Cataldo não as posiciona como vítimas indefesas. Leonor, Brites e Mécia, cada qual a seu tempo, acabam mostrando que são capazes de sofrer mas também de fazer sofrer; o que uma delas comete a uma criança é inenarrável. Acuadas por um destino que não escolheram propriamente, as órfãs do título precisam aceitar as determinações que sua mãe atribuiu a elas, mas não o fazem como um recebimento passivo. Conforme sua história começa a assentar e novos conflitos enfim surgem através da perseguição da Igreja, As Órfãs da Rainha mostra que ancestrais são os hábitos que permanecem até hoje, incluindo traçando paralelos com o advento das ‘fake news’, um tema inesgotável de reflexo no hoje.

A chegada de vilões históricos ao centro de As Órfãs da Rainha motiva uma fala de um dos personagens que define bem a segunda parte do roteiro, “a Inquisição traz o pior das pessoas”, e passamos a seguir o que cada um em cena pretende fazer para sobreviver. É nesse momento que o filme amarra mais forte sua vocação histórica com uma tradição da teledramaturgia, e o filme passa a provocar o espectador com uma ideia narrativa com apreço pela novela, ao mesmo tempo em que uma picardia típica do veneno da fofoca passa a ser aplicado, fazendo nascer também no espectador o pior do ser humano.

É a intencionalidade que acaba por amarrar o que é proposto por Cataldo em As Órfãs da Rainha, já que é da construção das ideias que o melhor é extraído de cada cena. No meio da fabulação que é atingida pelo encontro entre indígenas nativos, judeus europeus, portugueses e já uma ideia de brasileiros que se originaram da mistura de tantos povos, o filme tenta abraçar pontos demais e nem sempre os resultados são bem sucedidos. O maior deles é exatamente esse mulher para as vertentes de ser mulher, desde a mais ingênua e perseverante até a mais articulada e avançada, passando logicamente pelo estereótipo que perseguiu a perseguição às mulheres, como a histeria, a bruxaria e a diminuição de seus valores e desejos. Nesse setor, Cataldo consegue se sobressair com sua obra provocadora.

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