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“Lady Tempestade” faz da memória uma máquina de profecias

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No diálogo mais antioxidante de “Haraquiri”, filme de Masaki Kobayashi (1916-1996) ganhador do Prêmio Especial do Júri de Cannes de 1963, um samurai diz: “A esgrima não treinada em batalha é como natação que não se aprende na água: falha”. Ronin na luta contra as práticas institucionais de apagamento dos crimes cometidos pela ditadura brasileira, um dos eixos cênicos da peça “Lady Tempestade” , sobre a advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), carrega consigo uma espada afiada. Sua lâmina, digna dos anti-heróis de Kobayashi, é sua retórica. Ela fala alto, fala grosso, fala firme. Chega dizer a seu companheiro algo como: “Se você não me apoiar na defesa desse preso político, nossa relação acabou e eu vou embora”. É uma esgrimista que treinou no front.

Na trama contagiante escrita por Silvia Gomez, sob direção Yara de Novaes, Andrea Beltrão faz uma espécie de progressão aritmética, avançando casas sentimentais conforme se desdobra entre a composição branda de Mércia e a construção furiosa de A. A mulher que é vogal é alvo de um grupo que luta contra o esquecimento e recebe, em sua casa, um diário com os feitos de Mércia nos anos 1970.

No palco, o desejo de A. é que suas recordações pessoais – e aquelas que lhe chegam quase num ato conspiratório – se esfumacem. “Esquecer é um tesão”, afirma ela, no pleito dos que pecaram, dos que não (se) perdoaram, dos que se perderam. Mas o fio de lirismo que amarra os recortes de feitos de Mércia – por vezes solapados de riscos na folha do papel que A. lê – leva a personagem a preservar sua aprendizagem de Brasil.

O Brasil mais evidente na peça de Silvia – que quase levantou da tumba no finado governo que nos presidiu de 2019 a 2022 – é o do regime fardado pós Golpe de 1964. É um período que fez a poesia gerar um dos mais belos livros escritos neste país, “Inventário de Cicatrizes”, de Alex Polari. Seus versos iluminam (e humanizam) pelejas, qual “Lady Tempestade” faz, Basta suas estrofes memorialistas: “Não era fácil/ fazer o amor/ entre tantas metralhadoras/ panfletos, bombas/ apreensões fatais/ e os cinzeiros abarrotados/ eternamente com o teu Continental,/ preferência nacional./ Era tão irracional/ gemer de prazer/ nas vésperas de nossos crimes/ contra a segurança nacional/ era duro rimar orgasmo/ com guerrilha/ e esperar um tiro/ na próxima esquina”.

No monólogo estruturado sob a cenografia de Dina Salem Levy, com desenho de luz de Sarah Salgado e Ricardo Vívian, os réus a quem Mércia defende parecem com esse casal que fuma em Polari. Na sua poética, percebemos que a memória é uma máquina de profecias. Ela é a um só tempo uma Cassandra que nos remete a um provir de contraindicações e consequências e é a clarividência dos fatos secretos do presente, Ou seja: É A. e é Mércia. É o tempo da inércia e o tempo da fricção.

Numa natureza filosófica, disfarçada de sociologia, no contato com fatos reais, o texto de Silvia se arrisca por um limite filosófico ao repetir, com constância, a metáfora da falésia, acidente geográfico rochoso que reverencia o mar, jogando-se a ele, sem alcança-lo. Os personagens do “Haraquiri”, citados no início desse texto, também se referiam a fenômenos físicos da Natureza estudados pela Geografia: o vento no trigal, o paredão de pedra que refreia correntezas. São signos da condição humana oprimidas pelo Poder.

Num percurso autora conectado ao que fez em “Antígona”, Andréa acerca de uma semiologia heroica feminina, dando vida a mulheres como Mércia, que desfiaram shogunatos. O processo aqui partiu de uma busca de Yara e Andrea por um texto para trabalharem juntas. Como a diretora havia participado como atriz, há pouco tempo, do elenco do filme “Zé”, a saldo vívido daquela incursão cinematográfica fez com que ela chegasse à imagem de Mércia.

O tal longa, dirigido por Rafael Conde, fala sobre o militante mineiro José Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI do Recife em 1973. Ali, Yara soube da existência de Mércia, porque ela foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vítima, promover a exumação e a transferência para Belo Horizonte. Ao pesquisar sobre a história de Mércia, Yara chegou a Roberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octávio, marido da advogada, confiou os arquivos após a morte dela, em 2003. Além dos diários, há cartas e processos no acervo. Citado na peça como R., a pessoa que envia a encomenda para A., mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andrea. Ele o fez antes mesmo de publicá-los, em meados de 2023, no livro “Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974” (editora Potiguariana).

O que se levanta no Poeira são traumas, são soluços, são resquícios de um pesadelo que, vez ou outra, ronda a gente. O que Andrea faz é manter a gente acordado. Para isso, ela troveja.

Serviço:
Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104 – Botafogo)
Horário: Quinta a sábado, às 21h | Domingo, às 19h
Temporada: de 04 de janeiro a 04 de fevereiro
Ingressos em Sympla
Bilheteria: terça a sábado, das 15h às 21h | domingo, das 15h às 19h
Classificação: 12 anos

Saiba mais sobre a peça!

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