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“O Futuro da Humanidade” se faz urgente, contagioso e incurável

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Dialético mesmo quando parece ser retórico, posicionando seu estudo existencialista numa recorrência das palavras “aplausos” e “vaias”, o espetáculo “O Futuro da Humanidade” se faz urgente, contagioso e incurável com uma frase: “A vida tem curvas imprevisíveis”. Na direção do texto de Ingrid Zavarezzi, baseado em livro homônimo do psiquiatra Augusto Cury (também creditado na adaptação), o encenador Rogério Fabiano parece ter escutado (bem), estudado, decorado e praticado essa frase supracitada na forma. É uma peça calcada no imprevisível.

Sua dinâmica de palco vira nas curvas do melodrama quando parece uma narrativa expositiva, tomando ainda o atalho do riso onde menos se espera. Apesar das múltiplas estradas que percorre, nunca perde o foco no debate da exclusão e da violência decorrente de enfermidades mentais.

A dramaturgia de “O Futuro da Humanidade” ataca a brutalidade do sistema de saúde brasileiro no tratamento do que se convencionou chamar de “loucura”. Fabiano sabe dar à batalha ética proposta por Cury (relida por ele e Ingrid) uma carga lúdica, que evoca muita coisa, a começar de uma canção de Moacyr Franco: “Balada Para um Louco”.

Assumindo como protagonista um morador de rua bem parecido com o personagem vivido por (um maduro e encantador) Kadu Moliterno é acompanhado pela música gravada por Moacyr que faz a crônica da psiquê de alguém que abraçou a falta de lucidez para se proteger das asperezas do mundo. A letra, certamente, convida ao canto: “Num dia desses ou, numa noite dessas/ Você sai pela sua rua ou, pela sua cidade ou/ Ou, sei lá, pela sua vida, quando de repente/ Por detrás de uma árvore, apareço eu/ Mescla rara de penúltimo mendigo/ E primeiro astronauta a pôr os pés em Vênus/ (…)eu flerto com os manequins/ O semáforo da esquina me abre três luzes celestes”.

Nessa cantiga, o personagem criado por Moacyr nos convida a uma viagem por seu olhar de anjo torto, a ser gauche na vida. “Te ofereço uma bandeirinha e te digo/ Já sei que já não sou, passei, passou/ A Lua nos espera nessa rua é só tentar/ E um coro de astronautas, de anjos e crianças/ Bailando ao meu redor, te chama/ Vem voar”. Uma oferta similar é feita pelo herói da maluques vivido por Kadu: Falcão.

Lembrado mais como o aspirante a Colt Seavers (aquele dublê bom de briga, bom de salto, bom de tudo vivido por Lee Majors na série “Duro na Queda”) o eterno Juba de “Armação Ilimitada” brilhou na TV em muita coisa. Kadu Moliterno iluminou “O Dono do Mundo” (1991), foi heroico no sólido remake de “Anjo Mau” (1997) e se destacou sobretudo no especial “Entre o Céu e a Terra”, do programa “Brava Gente”, em 2000. A temperança de cada um dos tipos brasileiríssimos que encarnou nesses trabalhos está agora nos palcos. Aliás, há um pedacinho da doçura e da fragilidade de cada um desses trabalhos do ator na figura de Falcão. Como o solitário rapsodo de Moacyr Franco ele crê: “A Lua nos espera nessa rua é só tentar”.

Falcão é um espírito livre que abraçou as esquinas frias como lar depois de um surto que lhe tirou o trabalho, o convívio familiar e o prestígio de pensador. É melhor que não se detalhe o que ele fazia antes de cair nas quebradas do mundaréu. Que a surpresa da encenação! O importante é saber que ele dormiu em lençóis de cetim no passado e, hoje, faz do firmamento seu cobertor. A cenografia idealizada com sobriedade (e lirismo) por Ciro Barcelos (também responsável pelos figurinos) traduz o espaço das grandes cidades por onde o flâneur Falcão zanza com serenidade. É orvalho, nunca tempestade.

Aliás, nada é tempestuoso em cena, mesmo nos momentos mais tristes. A luz delineada por Thiago Claro França (operada pelo técnico Magnus Nicollas) jamais nos convida a um abismo, ainda que haja algo de nietzschiano no texto, como em muito do que Cury – um dos maiores vendedores de livros de nossa literatura – faz, vide “Nunca Desista de Seus Sonhos”. Aliás, o grande achado da leitura de sua obra proposta por Ingrid Zavarezzi é driblar qualquer pecha de “autoajuda” a que o autor é associado.

Não que não exista em sua prosa uma dimensão de aconchego e acolhimento em sua prática literária, como comprovam sucessos editoriais como “O Vendedor de Sonhos”, este bem adaptado para o cinema por Jayme Monjardim, em 2016. Mas a potência de sua escrita vai além do analgésico, concentrando-se no entendimento das metamorfoses possíveis do espírito, o que nos leva a Nietzsche.

Além disso, tem sim bastante coisa do filósofo germânico da montagem com que Rogério Fabiano tem comovido os palcos do Rio, começando pela discussão da ideia de que todo diamante é carvão endurecido. O “endurecimento” é o que Falcão vai nos revelar (e questionar) ao cruzar com o processo de formação de um médico idealista, Marco Polo, um papel muito bem defendido por Pedro Pilar. Mesmo ao lado de um sol (Kadu, radiante em sua luta para expor seu ferramental cênico), Pilar irradia a plateia Vanucci afora.

Empático, Marco Polo se rebela contra os métodos de tratamento psiquiátrico impostos por seu professor de anatomia ao dissecar um cadáver, propondo descobrir quem o “defunto” foi. Na busca pela identidade do morto, chega a um amigo e companheiro de devaneios dele, o já citado Falcão. O sujeito fala feito Shakespeare (ao dizer, por exemplo, “A culpa é a pior tortura que alguém pode enfrentar”) e tem sua própria noção de economia (“Rico é aquele que faz muito do pouco”).

Contagiado pela poesia de Falcão, Marco Polo vira um psiquiatra avesso a cultura da tarja preta e do banimento dos que tem um cérebro fraturado pela esquizofrenia. Mas em sua jornada pelo conhecimento da mente e de sua gêmea marota (a alma), ele carrega uma bússola afetiva: Anna (Thalita Drodowsky, em chamas em cena), uma ex-colega que esconde um segredo. O amor por ela dá a “O Futuro da Humanidade” um tônus romântico pra fazer a gente suspirar, de saudade ou de carinho.

Em “O Futuro da Humanidade”, Thalita Drodowsky tira a personagem de qualquer lugar comum da heroína alquebrada, empoderando seu caminhar no enredo, numa delicada modulação vocal. Como ela, o elenco todo tem momentos de plenitude. Rogério Fabiano usa com sabedoria as destrezas de Guilherme Uzeda, Silvana França e Rodrigo Banks. A força do texto de Zavarezzi e de Cury é um tabuleiro de xadrez suficientemente vigoroso para que essas peças se movam de modo elegante, até Kadu nos dar xeque-mate.

Não há como ver a peça e não pensar em filmes como Muito Além Do Jardim (1979) e Reine Sobre Mim (2007), ambos centrados em suicidados da sociedade. Como Peter Sellers e Adam Sandler faziam nesses longas-metragens, cada um a seu modo, Kadu encontra o espaço de ruptura em que saber se ausentar nas normas do planeta é um ato de resistência.

Saiba mais sobre a peça!

ERVIÇO:
“O Futuro da Humanidade”
Temporada: De 6 de janeiro até o dia 25 de fevereiro. Não haverá sessão no carnaval.
Sábado, às 21h. E domingo, às 20h.
Teatro Vannucci (Rua Marquês de São Vicente 52, Gávea – Shopping da Gávea).
Ingressos na bilheteria
Duração: 80 minutos.
Classificação: 10 anos.

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